O jardim das delícias onde a beleza nasce da escuridão

Publicado a

Jacob van Eyck terá composto a Doen Daphne d’over Maeght (eu já me debruço sobre o significado desta lista de palavras holandesas, não se preocupem) no início do século XVII. Ouço-a como uma das melodias mais bonitas e com maior potencial virtuoso da história da música europeia, mas parece-me que também é um profundo exercício de hedonismo, tanto para quem a ouve, como para quem a toca e, a limite, para quem a compôs. Esta é a história de quem transferiu a beleza dos olhos para os ouvidos, por não a poder ver.

Antes de começar a contar esta história, quero advertir que será altamente especulativa da minha parte, porque nasci no final da década de 70 do século XX, enquanto van Eyck nasceu na última década do século XVI. Parecendo que não, e apesar de todos os esforços de historiadores, musicólogos e apreciadores de beleza, esta distância cronológica condiciona o rigor, até porque quero mesmo ser afetado pelas minhas emoções e quero que quem me lê faça o mesmo com as suas, num turbilhão.

Jacob van Eyck nasceu cego, aproximadamente em 1590, talvez em Haia (é o maior rigor histórico que consigo convocar neste momento, mas sem certeza absoluta). Sabe-se que viveu nas cidades de Heusden e Bergen op Zoom, para além de ter trabalhado em Utrecht, como especialista em afinação de carrilhões. Era, portanto, alguém que sabia mesmo muito sobre sinos. Desenvolveu uma série de teorias matemáticas sobre frequências em torno destes idiofones (instrumentos cujo corpo vibra, sem qualquer tipo de membrana ou corda esticada) mais ou menos cónicos. Seja como for, ainda que esta seja uma parte fundamental da vida de van Eyck, não é a que mais me move.

O músico compôs pelo menos centena e meia de melodias, com variações conexas, que seriam fixadas num livro, publicado em 1644, cujo nome derrete qualquer icebergue da alma (num exercício anímico muito ousado, vá): Der Fluyten Lust-Hof, que numa tradução livre para português é algo como O Jardim das Delícias das Flautas. Algumas melodias terão sido inspiradas ou adaptadas do cancioneiro popular dos Países Baixos.

Sublinho que Jacob van Eyck era cego. Sabe-se que alguém escrevia ou anotava o que ele tocava, ainda que ele próprio fosse bastante proficiente para o fazer. E é aqui que entra a Daphne. É o título de uma das melodias do tal jardim das delícias.

Doen Daphne d’over Maeght, numa tradução incrivelmente livre do holandês, é algo como A bela ajudante Daphne. Maeght pode ser um nome de família, mas tem uma raiz etimológica francesa numa palavra que significa ajudante. Mas esta é a história que quero contar e vou optar por seguir esta teoria.

Foto: Vítor Moita Cordeiro

Começa em Ré. Uma semínima. E acaba numa mínima, no mesmo tom. Pelo meio é uma explosão de várias coisas, todas bonitas.

Imagino que, tendo van Eyck nascido num meio nobre, lhe tenha sido atribuída uma ajudante, chamada Daphne, que ele nunca viu. Se ele conseguiu aprimorar a afinação de algo tão bruto como um sino, imagino-o a ouvir cada detalhe da voz da Daphne e a desenhá-la na escuridão. As linhas são figuras rítmicas, frequências e timbres. E ar, apenas, que assume todas as formas do mundo através das flautas renascentistas.

Não sei se Daphne ajudou Jacob van Eyck. E, se o fez, não sei como terá sido. Lavou roupa? Preparou refeições? Plantou legumes? Agarrava num braço do compositor e levava-o a dar passeios? Será que Daphne existiu? Será que era musa de outra pessoa, que van Eyck, numa sanha invejosa, tomou para si? Não creio que haja respostas, mas também não as quero para mim. A ‘minha’ (dele) Daphne vive naquela melodia e naquelas variações. E dança, colhe flores, faz festas a gatos, tem cabelo ondulado, castanho ou azul, com raios dourados, tem olhos verdes e castanhos e cinzentos e usa roupas pesadas, talvez feitas numa versão holandesa do nosso burel. A cor da pele é qualquer uma, mesmo que houvesse uma predominância tonal nos Países Baixos do início do século XVII. A Daphne é uma súmula de todas as mulheres e não é nenhuma delas. Foi escrita com música através da escuridão e é imortal. Ouçam-na, por favor, seja tocada por François Lazarevitch, Frans Brüggen, Sarah Jeffery, Lucie Horsch ou Hester Groenleer. A Daphne existe.

Diário de Notícias
www.dn.pt