O fim da dissidência II

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Se na semana passada contei que enquanto aprendia a andar, Thatcher e Reagan começaram o seu legado - espalhando-o por todo o mundo. Quando tive noção das minhas primeiras orientações cardinais, já estava na rua.

As consequências de uma nova versão do mundo criaram uma cultura de resistência, de cultura propriamente dita, mas também de contestação nas ruas à medida do contexto de cada país. Na Grã-Bretanha, um dos melhores exemplos dessa contestação foram os motins da Poll Tax (um género de flat tax), com várias saídas à rua, mas com apogeu a 30 de Março de 1990 onde as centenas de milhar de pessoas nem cabiam em Trafalgar Square. O imposto acabaria por ser retirado.

O grau de contestação aumenta durante toda a década, o que não é alheio à subida da esquerda ao poder. Normalmente os antagonismos eram outros, mas a velha máxima de que a esquerda seca a rua extingue-se nesse período. A nova formulação de esquerda, da dita terceira via, primeiro nos EUA com Clinton e mais tarde com Blair em Inglaterra, manteve e ampliou as políticas económicas anteriores, não resolvendo a degradação das condições de vida e frustrando as reivindicações da rua.

Não por acaso, foi já com Clinton no poder que o Tratado de Livre Comércio Canadá/EUA se alargaria ao México formando a NAFTA, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1994. No mesmo dia, a partir da Selva de Lancadona, um grupo de indígenas agremiados em volta do Exército Zapatista de Libertação Nacional traria a público a sua luta declarando guerra ao México. Chegava a hora de abrir um apartado, fazer correspondência com o mundo. A luta contra o neo-liberalismo ganharia nova forma.

Apesar de feita a pensar nos lucros e especulações possíveis a partir da livre circulação de mercadorias, informação e fluxos financeiros; este novo patamar da globalização também permitiu facilidade de circulação de pessoas da Europa e América do Norte. Cada encontro das governações transnacionais para a aceleração do capitalismo e desigualdades, era confrontado com oposição aos milhares nas ruas, muitas das vezes capazes de fazer suspender cimeiras.

São reconhecidos como pontos altos desse movimento - que comummente se designou por anti-globalização -, as resistências ao encontro da Organização Mundial do Comércio em Seattle (1999), à Cimeira do FMI e Banco Mundial em Praga (2000) e ao encontro do G8 em Génova (2001).

No entanto. o movimento não se cingia apenas a essas grandes manifestações, mas a práticas de resistência diárias conectadas mundialmente. A morte às mãos da polícia de uma imigrante em Bruxelas teria consequências imediatas em Lisboa, Berlim e Madrid. O mesmo para uma prisão política ou o despejo de um centro social.

A extinção desse movimento global, como estava então organizado deveu-se, a meu ver, às consequências de dois momentos consecutivos: a repressão após o G8 em Génova e ao 11 de Setembro de 2001.

Nas ruas de Génova, a polícia assassinou um manifestante: Carlo Giuliani, mas não se ficou por aí. As fronteiras foram fechadas e centenas de manifestantes foram detidos, torturados e mais tarde condenados a prisão efectiva. Itália era o laboratório perfeito. Das democracias europeias era o país talvez com maior tradição de infiltração da extrema-direita nas suas forças policiais, e um conjunto somado de pecados desde a década de 60 que naturalizou esse comportamento.

O 11 de Setembro, por todo o espectáculo e mudança de paradigma global, causou uma anemia total a que se associou um conjunto de leis anti-terroristas que foram habilmente usadas para desmantelar a arquitectura dos movimentos sociais onde eles eram fortes.

Foram precisos dez anos para que se formasse novamente uma rua global no hemisfério norte. Surgiu em consequência da crise do imobiliário de 2008 e das medidas de austeridade dos anos posteriores. Da desarticulação anterior, muitos, na sua relação solitária com as redes sociais, tomando conhecimento dos eventos e da vontade de contestar, dirigiram-se para as principais praças das cidades e por lá ficaram.

A permanência contínua no espaço público passou a forma de luta. Foi assim em 2011 na Praça do Rossio, em Madrid (15M) e em Nova Iorque (Occupy).

No caso do Estado espanhol, o movimento de 15 de Março teve consequências na reformulação da esquerda apresentada a eleições posteriores, tanto a nível nacional como autárquico. Em Portugal nem por isso. Criou um lastro de novos espaços sociais em Lisboa, alguns já extintos e outros actualmente em perigo, mas não mexeu na estrutura partidária, a não ser em algum recrutamento e, mais tarde, numa união dos partidos pré-existentes à esquerda para anular algumas das medidas da austeridade.

A esquerda portuguesa tem tido dificuldades em lidar com rua e com o quotidiano de todos. Ao invés de se envolver, de se instalar junto dos demais, parece que a rua espontânea e as gentes patrocinam alguma ameaça a quem a encabeça.

Esse comportamento é visível na relação que mantém, por exemplo, com o movimento climático ou com a diversidade, recorrendo a um certo tokenismo. Essa atitude é expressão da sua elite e perante as críticas correm a denominar-se aliados. Há coisas que a esquerda não pode fazer de bandeira para si própria, a interseccionalidade deve ser incorporada.

Nem tão pouco deve correr o risco de se fechar em si mesmo, criando fóruns que são mais do mesmo, sem nenhuma novidade integrativa e abrangente. Fóruns que apenas servem para promover os interlocutores de sempre a comentadores da praça ou empregados de instituições.

Já não há extremo na esquerda, nem tão pouco a dissidência necessária para mudar as vidas.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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