O Ano Novo e o último homem

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“Amor? Criação? Desejo? Estrela? O que é isso?” – Assim pergunta o último homem, a piscar o olho. A terra será então mais pequena e sobre ela saltitará o último homem, que tudo torna mais pequeno. A sua raça é indestrutível, como a das pulgas”

(Nietzsche, Assim falava Zaratustra)

O inverno instala-se, fora e dentro de nós, e o céu nublado responde à nossa vaga e incerta melancolia face aos anos que nos fogem.

As festas do Natal serviram-nos para afastar de nós, ou então para nos fazer esquecer, a solidão. Entre o esplendor da festa e a incógnita do futuro, projetamos, numa invenção do nosso espírito e da nossa medida do tempo, uma entidade indefinida a que chamamos Ano Novo.

A única grande qualidade que este Ano Novo pode trazer está na sua imprevisibilidade. Vistos os prognósticos dos nossos sábios políticos e geopolíticos, não fundados na análise das vísceras de um qualquer animal, mas na sua visão dos equilíbrios e desequilíbrios das relações de força, dos equilíbrios e desequilíbrios das mentes dos poderosos, as previsões são de susto. Porque não, então, seguir os estóicos e concentrarmo-nos no que podemos mudar, guardando toda a nossa resistência moral para suportar e tentar aliviar os pesadelos que nos anunciam?

Como dizia Fernando Pessoa, grandes são a poesia, a bondade e as danças/ mas o melhor do mundo são as crianças. Olhando-as, vemos do passado as nossas origens e do futuro as nossas esperanças. Porque este declinar do desespero nas sombras ténues da melancolia é uma ameaça contra a vida, que devemos combater e afastar. Não somos ingénuos para deixarmos de reconhecer os perigos, mas recusamos o desarmar das nossas capacidades e das nossas esperanças que esta interesseira doxa do desespero nos quer incutir.

A alegria do possível deve prevalecer sobre as falsas certezas do ascetismo e do catastrofismo. Não seremos nós os escudeiros dos cavaleiros do Apocalipse. Nem os que trazem lenha para a fogueira onde nos querem queimar. Nem os que vestem de novidades as ideias oligárquicas dos séculos passados.

Defender a vida, a alegria e a abertura dos possíveis é o que nos cabe fazer, na defesa sem fim da nossa humanidade. Quem nos empurra para a guerra, quem nos diz que não há alternativa à injustiça, quem nos quer tornar impotentes com o desespero é aquele último homem que Nietzsche profetizou, com repúdio e desgosto.

Feliz Ano Novo!

Diplomata e escritor

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