Aleitura do livro de Michael Sandel (Presença, 2022) sobre a meritocracia ou “tirania do mérito” tocou a corda sensível de muita gente que viu ali demonstradas de forma inegável e fundamentadas de modo irrefutável as suas teses acerca dos mecanismos perversos da mobilidade social nas sociedades contemporâneas.Confesso que apreciei a leitura e admirei a assertividade (como agora soi dizer-se) do autor sobre o lado negro, enganador e falaccioso dos princípios teoricamente meritocráticos do mundo liberal ocidental. E tem razão ao apontar que ninguém consegue demonstrar o seu “mérito” num ambiente que não é neutro ou livre de influências exógenas às suas capacidades individuais. Onde se nasce e cresce, não apenas em termos de contexto socio-económico e cultural familiar, mas até de localização geográfica do domicílio, são poderosos condicionadores do desempenho dos indivíduos. Assim como a rede de contactos, amizades, cumplicidades e lealdades que se estabelecem desde fases muito precoces da vida, é decisiva para o “sucesso”.Ou seja, o “mérito” não é algo que seja possível manifestar, desenvolver, apresentar, detectar ou avaliar de um modo “puro”, podendo mesmo a pressão para obter o seu reconhecimento social, familiar ou dos pares ser um factor de desestabilização da saúde mental ou levar a estados de frustração e depressão quando isso não é conseguido. Estas críticas tiveram um entusiasmado acolhimento, por exemplo, entre professores e pedagogos mais influenciados por teorias igualitaristas e defensoras de processos de baixa selectividade entre a avaliação dos alunos.Concordo com tudo isso. No entanto… não li apenas o livro de Sandel, nem fui espreitar apenas outros que confirmem as minhas reservas sobre o que se entende por “meritocracia” desde a análise crítica original feita por Michael Young em 1958 (The Rise of Meritocracy). Para além disso, tentei perceber (sem sucesso) qual a alternativa ao ideal da “meritocracia” e à recompensa dos que se entende serem os “melhores” (por subjectivo que seja o conceito) para desempenharem determinadas funções e ocuparem, nomeadamente, cargos de governação da coisa pública. Até que ponto existe outro método, não aleatório, mais adequado para escolher quem nos deve governar, por muito que consideremos que o modelo presente está distorcido e deturpado em relação ao ideal original. Afinal, não se baseiam a Democracia e a República no pressuposto de que os cidadãos têm o direito a escolher aqueles que consideram os “melhores”? Não é esse o significado essencial das eleições, por muitas críticas que possamos fazer ao estado do nosso sistema político ou à própria clarividência dos eleitores?Criticar a meritocracia, pelas suas limitações ou mau uso, não equivale a criticar a própria Democracia? Não merecerá ser aperfeiçoada nos seus mecanismos em vez de a(s) abandonarmos?Professor do Ensino Básico. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico