Todos sabemos que o direito fundamental à habitação não é diretamente aplicável, supondo mediação legislativa, através da adoção de uma política pública de habitação. A política pública vigente determina que os moradores desalojados do Bairro do Talude Militar não consigam aceder facilmente por esta via a uma nova habitação: há mais de mil pessoas que antes deles aguardam que a sua pretensão seja satisfeita em Loures, também muitas delas em situação de “emergência social”.Todos sabemos que o direito de propriedade é um direito fundamental cujo respeito implica que, em princípio, ninguém possa construir uma barraca num terreno privado e que, se o fizer, esta seja ulteriormente demolida. Todos sabemos que a legislação vigente em matéria de habitabilidade dos imóveis supõe que estes não constituam risco para a higiene e saúde dos seus potenciais moradores. Basta pensar nas “puxadas ilegais” de energia elétrica para concluir que não é aceitável que as pessoas continuem a viver em barracas no Bairro do Talude Militar.Porém, todos também sabemos que a população afetada pelas demolições das barracas neste bairro é pobre e extremamente vulnerável. Podemos, no plano jurídico, discutir se são nacionais ou estrangeiros, se cidadãos de países terceiros e quais os seus direitos de acordo com o Direito Português vigente. Mas não podemos ignorar que as soluções de lhes oferecer o quantitativo correspondente ao valor da caução e do primeiro mês de um eventual contrato de arrendamento ou de duas semanas de estada numa pensão são ilusórias para resolver o seu problema habitacional: Quem lhes arrenda uma casa, quando a discriminação racial é tão frequente na celebração deste tipo de contratos? Quem lhes paga a diária da pensão decorrido o aludido período inicial?Não podemos, também, ignorar que são pessoas que têm em regra um trabalho precário ou auferem o salário mínimo nacional. Que não têm possibilidade de pagar o valor correspondente ao seu alojamento e ao da sua família. Que nos servem em tarefas que muitos Portugueses se recusam a fazer. Que esperamos que trabalhem durante o dia e, de noite, se escondam debaixo das pedras como se não existissem e não nos incomodem.Podemos discutir todas as implicações jurídicas da situação em que se encontram, quem é ou não competente para os realojar, se o processo de demolição das barracas obedeceu a todos os trâmites legais aplicáveis. Porém, não podemos ignorar o essencial: são pessoas, muitas nascidas nas ex-colónias portuguesas, que se encontram a viver no meio de destroços e de lixo, ao relento e sem capacidade de resolver a sua situação. Que nos servem nas atividades de limpeza, de prestação de cuidados e não auferem um salário que lhes permita satisfazer as suas necessidades básicas. Cuja vida não podemos continuar a observar diariamente na televisão como se de um reality show se tratasse, indiferentes ao seu dia a dia indigno de um de um Estado que se diz de Direito. É necessário que através da tutela jurídico-administrativa conferida no âmbito da Segurança Social, da Proteção Civil, do Direito Autárquico se encontre uma solução rápida para o seu problema que, neste momento, depende sobretudo da vontade política e da ação administrativa dos poderes, central e local, competentes para o efeito.Há cinquenta anos conseguimos realojar centenas de milhar de Portugueses na sequência da independência das ex-colónias. Ninguém ficou – ao que temos conhecimento – desalojado aquando dos graves incêndios que ocorreram no território nacional nos últimos anos. Há soluções de emergência que podem e devem ser aplicadas nesta situação. Não há imóveis do Estado devolutos que possam ser ocupados?O processo teria sido igual se estivessem em causa cidadãos nórdicos? O que reflete o voyeurismo com que o País tem assistido a todo este processo do nosso racismo estrutural? Têm os escravos alma? Ou são titulares direitos, entre eles o de não ficar ao relento? Como reagem se os colocarmos ao ar livre sem água e luz? Retiramos-lhes a comida também?“Isto não é Portugal”, afirmou um morador aquando da visita do Embaixador de São Tomé e Príncipe ao referido bairro.“Vemos, ouvimos e lemos Não podemos ignorar”, acrescentamos nós. Professora da Faculdade de Direito da Universidade Nova