Lembrar um conto popular…

Importa sensibilizar os portugueses para a tomada de consciência da necessidade de uma proteção solidária. Como disse o Presidente da República, muito bem, a primeira prioridade é o combate da pandemia. Importa cerrar fileiras para enfrentar o perigo real com que o mundo se defronta. Não está em causa a liberdade e o direito, mas o respeito mútuo de uma cidadania livre e responsável. Daí a necessidade de uma maior coordenação nacional, europeia e internacional e de medidas excecionais que correspondam ao que o direito designa como estado de necessidade, em nome da preservação da vida de muitas pessoas.

E lembramo-nos de um célebre conto tradicional, que muitos de nós ouvimos contado pelas nossas avós. "O Homem que busca estremecer", incluído por Adolfo Coelho nos Contos Populares Portugueses (1879) que constitui uma versão nossa do velho conto dos irmãos Grimm do jovem que partiu em busca do medo. "Era um homem rico e tinha um filho que nunca estremeceu com nada. Dava-lhe o signo dele de ir passar muitas terras e nunca seria timorato, nunca teria medo a cousa alguma." Pediu então o filho a seu pai que lhe desse o seu quinhão para ele poder partir em busca do medo que lhe faltava. E assim aconteceu, enfrentando mil situações aterradoras. Com demónios estoirando dentro de casas, sempre sem o mínimo calafrio. A tradição germânica relatada pelos Grimm é muito semelhante. "Um pai tinha dois filhos, o mais velho deles era sábio e sensato, e sabia fazer tudo, mas o mais novo era tolo, e não conseguia aprender nem entender o que quer que fosse." Mas enquanto o mais velho se negava a ir para locais sombrios e assustadores, nada atemorizava o mais novo. Por mais que tentassem, nada havia que lhe metesse medo - até que um pobre sacristão ficou em muito mau estado quando quis assustá-lo como se fora um fantasma, pois o jovem não se deixou perturbar pela suposta ameaça. Então partiu pelo mundo em demanda do medo. Com cinquenta moedas no alforge, enfrentou perigos, até com risco de vida, mas sempre sem o menor temor.

José Gomes Ferreira também tratou do tema nas Aventuras de João Sem Medo, na qual, cansado de viver numa terra de choros e queixas, a aldeia de Chora-Que-Logo-Bebes, João decidiu saltar o muro que separava o lugarejo do mundo, em busca de enigmas da infância e de entes fantásticos - bichas de sete cabeças, gigantes de cinco-braços, fadas, bruxas, animais que falavam e ainda o mítico Príncipe de Orelhas de Burro...

No conto de Adolfo Coelho, o medo seria encontrado num cabaz de pombas que "lhe esvoaram para a cara", causando-lhe estremecimento; no relato de Grimm, o jovem tornar-se-ia rei e tudo terminou num epílogo algo ingénuo e pouco épico, com um balde de água fria, lançado pela aia da rainha, cheio de gobiões, peixinhos moles e peganhentos, com barbatanas perturbadoras.

As metáforas antigas merecem ser lembradas, a sério. Os tempos muito incertos e cheios de ameaças que vivemos não permitem que facilitemos as coisas. Ainda estamos longe de nos libertarmos destas condições trágicas. Precisamos de encontrar todos os meios possíveis para inverter a tendência e podermos salvar vidas. A liberdade individual e a proximidade uns dos outros terão de ser recuperadas com solidariedade e esperança. Urge compreender o medo e a verdadeira audácia, para não nos desprevenirmos nesta pandemia que nos enlouquece...


Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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