Isto só lá vai com manifestações? 

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As imagens desta semana das ruas francesas tomadas por centenas de milhares de manifestantes a protestar contra cortes orçamentais não são apenas o retrato de uma conjuntura especificamente francesa. São um sintoma da crise estrutural que atravessa a França, toda a União Europeia e, claro, Portugal.  

A França teve três primeiros-ministros em menos de um ano e sucessivos planos de austeridade rejeitados no parlamento. O presidente Emmanuel Macron está fragilizado. O novo chefe de governo, Sébastien Lecornu, herdou um parlamento fragmentado e uma rua onde sindicatos, professores, profissionais de saúde e estudantes se unem na recusa em aceitar mais sacrifícios.  

Quando Sophie Binet, a líder da CGT, a maior central sindical francesa, afirma que “é a rua que deve decidir o orçamento”, exprime não apenas a força social francesa, mas também a perceção de que as instituições representativas perderam a capacidade de mediar conflitos básicos sobre justiça social, salários e serviços públicos – se o parlamento, o governo e até os tribunais não resolvem os problemas, resta o protesto. 

Em Portugal a CGTP levantou críticas semelhantes perante a proposta do governo AD de revisão da legislação laboral. Tal como a CGT francesa, também a central sindical portuguesa denuncia o favorecimento do patronato, alertando que medidas como a fragilização da contratação coletiva, a suspensão unilateral de convenções em caso de alegada crise empresarial e a limitação da duração dos contratos coletivos representam um retrocesso social.  

A própria UGT, habitualmente mais moderada neste tipo de críticas, tem denunciado a extrema gravidade para os trabalhadores destas e de outras medidas e até os Trabalhadores Social-Democratas, ala da UGT de filiados no PSD, o partido dominante no governo, admitem já aderir a uma greve geral. 

Este tipo de conflitos repete-se em Berlim, Roma, Madrid ou Lisboa. A União Europeia construiu, ao longo das últimas décadas, um enquadramento orçamental que privilegia o combate à dívida e a contenção da despesa social, enquanto promove benefícios fiscais e apoios aos grandes grupos económicos. O resultado é a erosão da confiança popular na democracia liberal (liberal para a economia, mas uma prisão para quem trabalha) e o crescimento de forças de protesto – tanto à esquerda como à extrema-direita.  

André Ventura, em Portugal, tal como os seus congéneres europeus, vampiriza esta hemorragia de descontentamento expelindo o sangue da demagogia para cima de imigrantes, ciganos e políticos alegada ou efetivamente corruptos, mas apoia ainda mais benefícios fiscais para os empresários, em vez de defender melhorias de rendimento para quem trabalha.

O colapso político francês é, portanto, exemplar. Indiferentes à crise social, os líderes europeus preocupam-se antes em arranjar dinheiro para pagar a guerra na Ucrânia e o apetite insaciável de Donald Trump, em vez de resolverem os problemas reais dos seus cidadãos. 

Fazem-no com enorme desfaçatez: acabei de ler na internet uma notícia que adianta que uma das medidas que o governo português pensa aplicar para resolver o problema da habitação é... acabar com o teto de 2% para o aumento das rendas para novos contratos, permitir a esses senhorios subir livremente os arrendamentos e facilitar os despejos! 

Como é que medidas destas criam casas mais baratas!? 

Isto só mesmo com protestos na rua... 

Jornalista

Diário de Notícias
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