Estrangeiros no próprio país

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O Covid-19 tirou do anonimato as comunidades imigrantes que vivem na Costa Vicentina, pessoas que na sua maioria se dedicam a apanha de frutas e hortícolas nas estufas da região.

Contam uma história de êxito e de fracasso. O êxito sobrevém do crescimento de empresas que contribuem para a riqueza nacional, aumentam as exportações e modernizam a agricultura, hoje muito mais eficaz. Criou-se emprego, aumentou-se o PIB, introduziu-se dinamismo na economia local e cresceu a receita arrecadada pelo Estado.

A imigração rejuvenesceu a demografia e trouxe novos negócios, que vão dos supermercados às lojas de conveniência, passando por pequenas empresas de serviços. Mais emprego, mais receitas, mais dinamismo.

Abriram-se negócios dignos de comenda nacional. Saiba, caro leitor, que o melhor restaurante tailandês de Portugal fica numa pequeníssima localidade do litoral alentejano, tão pequena que não será sequer uma aldeia. O espaço, simples e castiço, é regido por uma família que tem a simpatia na massa do sangue e garante, ano após ano, comida caseira e honesta – o pad thai é irrepreensível, livre da insuportável pirotecnica gastronómica dos restaurantes citadinos feitos a pensar no Instagram.

Mas a medalha tem reverso. Muitos dos novos negócios abriram em espaços onde antes estavam os cafés, os tascos e os clubes recreativos onde a população autóctone – em grande parte idosa, com pouca escolaridade e ainda menos rendimento – convivia. O restaurante tailadês é disso exemplo.

Os lugares de socialização vão desaparecendo, tirando a muita gente a razão para sair de casa. Não se trata do mero encerramento dos sítios onde se jogava às cartas, se recordavam glórias da juventude e se discutia o tempo que passa, mas da extinção abrupta de locais essenciais à coesão social destas povoações.

Fenómeno semelhante ocorre no espaço público. Por definição, os imigrantes estão em idade activa, são gente que faz deslocações pendulares casa-trabalho. Estão na rua. Findo o trabalho, aproveitam os jardins e demais espaços exteriores para se relacionar com colegas e brincar com os filhos. Em alguns lugares da ruralidade alentejana e algarvia têm uma presença hegemónica no espaço público. Mais um incentivo para que a população autóctone se exile em casa.

As barreiras culturais fazem com que seja difícil estreitar a distância entre novos e velhos residentes. É que a língua, a religião e os costumes são outros. As elites urbanitas que vejam nisto um sinal de xenofobia apenas atestam o seu profundo alheamento do Portugal que existe fora das grandes cidades.

O conceito de culpa é inútil. Os imigrantes fazem o que nós, portugueses, fizemos em França, no Luxemburgo e na Bélgica: viver entre patrícios e abrir negócios com produtos da pátria que ajudam a matar saudades.

Por sua vez, é legítimo um certo ressentimento por parte de quem ali vive há décadas. A sua terra, que é também a dos seus pais e avós, encolheu sobremaneira e foi ocupada por gente forânea com a qual pouco ou nada têm em comum. Ademais, há trabalho para a imigração pouco qualificada e mal remunerada, mas não para os filhos da terra, que estudaram na esperança de viver melhor do que as gerações que os antecederam. É normal que se sintam estrangeiros no próprio país. Passos Coelho tem razão.

O problema tem de ser resolvido por quem o criou: o Estado – central e local – falhou nas políticas de fronteiras, falhou na integração de quem entra e ignorou as preocupações de quem acolhe. O fracasso maior está na forma como (não) pensou o território. Se há coisa que a imigração demonstrou nos últimos anos é que ignorar a realidade acaba inevitavelmente por agravar os problemas.

Politólogo. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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