Entre a Lei e a Política: O Tribunal Penal Internacional na Ordem Jurídica Global

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“Não há ordem sem justiça” 
Albert Camus

Prevalece, até ao fim da 2.ª Guerra Mundial, o entendimento de que os governantes no exercício das suas funções soberanas são juridicamente inimputáveis pelos seus actos, pelo que pouco é feito, no plano internacional, para impedir genocídios, massacres, homicídios, torturas, mutilações e outras violações gravíssimas dos Direitos Humanos em larga escala.

Os mecanismos institucionais e legislativos, tão necessários para evitar a impunidade perante a desumanidade, só surgem depois da 2.ª Grande Guerra. Em termos institucionais, a criação dos Tribunais Internacionais Militares de Nuremberga e de Tóquio, permite o julgamento, respectivamente, de líderes da Alemanha Nazi e do Império Japonês, por graves crimes cometidos aquando desse conflito. Este movimento foi complementado, no campo legislativo, pela protecção internacional dos direitos fundamentais, nomeadamente através da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Convenção contra o Genocídio e das quatro Convenções de Genebra que regulam o comportamento dos Estados em tempos de guerra (o chamado jus in bello), convenções essas nas quais se funda o Direito Internacional Humanitário.

Ainda em termos institucionais, a possibilidade de passar de tribunais ad hoc para um tribunal permanente é debatida durante muito tempo, sem sucesso. Tanto assim que, por resolução do Conselho de Segurança da ONU, são estabelecidos mais dois Tribunais ad hoc, no início dos Anos 90, para julgamento de graves crimes praticados na ex-Jugoslávia e no Ruanda.

O Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI) entra finalmente em vigor, em 2002, conferindo a esse tribunal, ao contrário dos tribunais que o antecederam, um carácter permanente e potencialmente universal.

Abre-se, assim, uma nova fase do Direito Penal Internacional, respaldada numa entidade à qual é atribuído um papel fundamental: julgar pessoas singulares (e não Estados) pela prática dos mais graves crimes internacionais (crimes de guerra, crimes contra a Humanidade, crime de genocídio e crime de agressão) independentemente da sua posição e poder, no âmbito de uma missão que transcende fronteiras nacionais; procurando impor a justiça em cenários onde os sistemas judiciais locais falham ou optam por não agir.

Na prática, a operação do TPI encontra-se intrinsecamente ligada às dinâmicas do poder e da vontade políticos, que tanto podem facilitar como obstruir a missão desse Tribunal. Por exemplo, a execução dos mandados de detenção emitidos pelo TPI contra  Vladimir Putin e, potencialmente, Benjamin Netanyahu, depende da cooperação internacional, a qual é ditada pela tensão intrínseca entre o direito e a política, minando com frequência a autoridade de tal tribunal.

Sucede que o TPI se encontra ligado à ONU, mas não é parte integrante dessa organização, independência essa que comporta desafios, principalmente no que toca à exequibilidade das decisões desse tribunal. Não assentando no recurso ao Conselho de Segurança da ONU, a implementação das decisões do TPI firma-se, como referido acima, na cooperação internacional, cujos contornos são influenciados por dinâmicas políticas globais. As investigações em curso na Ucrânia e na Palestina e os respectivos mandados de detenção (uns emitidos, outros potencialmente a emitir) contra figuras de peso, ilustram as dificuldades que o tribunal enfrenta.

No caso da Ucrânia, o TPI emitiu (i) a 17 de Março de 2023, mandados de detenção de Vladimir Putin, presidente da Federação Russa, e de Maria Alekseyevna Lvova-Belova, Comissária para os Direitos das Crianças da mesma Federação, por suspeita dos crimes de deportação e transferência forçadas de crianças ucranianas para território russo e (ii) a 4 de Março de 2024, mandados de detenção de Sergei Ivanovich Kobylash, tenente-general das Forças Armadas Russas, e de Viktor Nikolayevich Sokolov, almirante da Marinha Russa, por suspeita de vários crimes de guerra (contra civis e bens civis, danos incidentais excessivos e actos desumanos). Até hoje nenhum dos quatro foi detido, sendo que, sem detenção, não pode haver julgamento, pois este não pode ter lugar na ausência do arguido (assim manda o Estatuto de Roma).

No caso da Palestina, temem as autoridades israelitas que o TPI emita mandados de detenção contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, e outros líderes (The New York Times, EuroNews), mandados esses que Israel  (segundo o Times of Israel) pretende travar.

Tal como o Governo russo, o Governo israelita não reconhece a autoridade, nem a legitimidade, desse tribunal, nem dos mandados em causa. A capacidade do TPI de impor as suas decisões é, portanto, limitada pela vontade política dos Estados e pela teia das relações internacionais. Um  dos principais desafios enfrentados por esse tribunal reside, precisamente, no entrelaçamento entre a lei e os interesses nacionais e globais.

Conclui-se que o TPI vive um período difícil, num enquadramento geral em que a ética e a lei são frequentemente sobrelevadas por considerações políticas, diplomáticas, económicas e outras, com potenciais consequências nefastas para a ordem jurídica internacional que poderão emergir, na ausência de resposta adequada, sob a forma de ciclos de violência imparáveis.

Perante desafios substanciais à escala mundial, a promoção da justiça e da ética no plano global exige, por conseguinte, um compromisso renovado com o TPI, compromisso este que deve ser inserido num amplo quadro de colaboração, de solidariedade e de alianças internacionais, alicerçadas em princípios que tão claros se tornaram após a 2.ª Guerra Mundial, designadamente, a inviolabilidade da dignidade do ser humano e o combate à impunidade, lembrando que “a primeira igualdade é a justiça” (Victor Hugo).


A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.

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