Quando se completava um quarto de século sobre primeiro “estatuto do Ministério Público”, que surgira, ainda sem esse nome, poucos anos depois da Constituição, Eduardo Maia Costa – um jurista conceituado que foi Procurador-Geral Adjunto e depois Juiz Conselheiro do STJ – retratava o panorama com severidade: “uma operacionalidade reduzida, combinada com um enfraquecimento da cultura dos direitos fundamentais, eis o que caracteriza a actividade do Ministério Público no inquérito criminal, nas suas linhas gerais”. E sublinhava: “o resultado que hoje podemos constatar, sem grande dificuldade para quem queira ver, é o triunfo de uma cultura burocrática”.Este “enfraquecimento” da cultura dos direitos vulnerabilizava, já então, em termos crescentes, a reserva da vida privada e familiar, o direito ao bom nome e a presunção da inocência, para não referir o próprio direito à liberdade. E não só do MP, convenhamos, se deveria falar a este propósito. Fiquemo-nos aqui apenas por um exemplo: dos largos milhares de pedidos de autorização para escuta telefónica anualmente submetidos pelo MP, só 1 ou 2% eram indeferidos pelo juiz, mostrando bem o nível de consonância atingido inter-magistraturas, com prejuízo do papel de garante dos direitos fundamentais conferido ao juiz de instrução pelo artigo 32.º, n.º 4, da Constituição.Com a realidade a reforçar o diagnóstico, foi em 2007 introduzido um conjunto de alterações legislativas, com um desenho mais exigente e alinhado com a defesa dos direitos fundamentais (escutas telefónicas, segredo de justiça, detenção, consequências da violação de prazos legais, etc) no âmbito de uma revisão extensa do Código de Processo Penal que tinha sido prometida aos eleitores e que – mal recebida então por múltiplas vozes do MP e da academia – no essencial ainda vigora.Não integravam então a promessa eleitoral alterações na composição da instância mais relevante para o controlo do desempenho: o Conselho Superior do MP, o órgão colegial que integra a Procuradoria-Geral, a que constitucionalmente “preside” o PGR. Aí se manteve, pois, vindo de longe, e em dissonância com o que passa no Conselho Superior de Magistratura, o acentuado predomínio dos membros provenientes do MP, para que já Figueiredo Dias alertara em 1995 (“sério risco – senão a inevitabilidade – de corporativismo do órgão supremo de autogoverno”).Ressalta hoje que a divergência entre o desenho e o desempenho se foi, com os anos, agravando. Não obstante o regime legal mais exigente, os abusos, as falhas e incumprimentos vários foram crescendo em diversos domínios, sem que tenham surgido medidas ou reformas no sentido de facilitar o seu escrutínio e correcção. Dentro das suas esferas constitucionais de intervenção, governos e Assembleia da República, em sucessivas configurações, alhearam-se dessa divergência, chegando mesmo a aprovar soluções que ampliaram o fenómeno. Com a ironia que os próprios eventos encerram, o paroxismo seria atingido com um PM a demitir-se e uma Assembleia de maioria absoluta a ser dissolvida numa sequência aberta por um comunicado da PGR da mais incerta legalidade.Nas escolhas entretanto levadas a cabo pelo actual Governo e Presidente da República (em que avulta, como decisiva, a nomeação do PGR) nenhum sinal indica que a “cultura dos direitos fundamentais” tenha constituído critério relevante. Como poderá, sem ela, corrigir-se a trajectória e promover-se o Estado de Direito ?Jurista, antigo ministro. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico