Cultura, televisão e cultura televisiva
Falemos de Grand Tour, de Miguel Gomes. Pela primeira vez, há um filme português com algumas possibilidades de chegar a uma nomeação para o Óscar de Melhor Filme Internacional (ex-filme estrangeiro). Entenda-se: não se trata de alimentar a demagogia dos políticos que aparecem na linha da frente sempre que alguma produção portuguesa obtém reconhecimento lá fora (Miguel Gomes foi distinguido com o Prémio de Realização em Cannes). São os mesmos que nunca pronunciaram uma palavra sobre os investimentos que qualquer política cultura requer e, mais do que isso, impõe.
Num plano meramente intuitivo, não posso esconder que, fosse qual fosse o filme português escolhido para aquela candidatura, me parece quase impossível obter a desejada nomeação. Não falo de questões de “qualidade”, tento apenas não alimentar qualquer arrogância nacionalista e reconhecer as limitações da presença de Portugal no contexto (económico e simbólico) em que se realizam os Óscares.
Ainda assim, algo está a acontecer em torno de Grand Tour. Observe-se o curioso sistema de “previews” em que, todos os anos, a imprensa especializada dos EUA se delicia a tratar os Óscares como um formidável jogo de apostas. Consulte-se o leque de previsões da Variety, espelho multifacetado da grande indústria cinematográfica, não por acaso há muito reconhecida como a “Bíblia de Hollywood”. Aí encontramos os cinco títulos considerados como os candidatos mais fortes a uma nomeação - o representante da França, Emilia Pérez, de Jacques Audiard, muito provável vencedor, surge em primeiro lugar; depois desses cinco, são citados mais cinco filmes (“next in line”) com hipóteses, surgindo Grand Tour em oitavo lugar.
Mudando de assunto (mas é o mesmo…), observemos o nosso contraponto existencial: o país vive ocupado por uma gritaria mediática, todos os dias encenada em convulsões político-futebolísticas formatadas em renovados, e renováveis, episódios de uma telenovela infinita - com vantagens óbvias para os políticos e analistas que se especializaram na fabricação de tais episódios.
Daí o contraste estrutural que reaparece numa interrogação genuinamente jornalística que não ouvi ninguém formular (e peço antecipadamente desculpa se estou a fazer uma generalização abusiva): algum político colocou a cultura em destaque nos debates sobre o Orçamento de Estado de 2025? Passámos mesmo a viver num país em que o burburinho político-mediático ignora os temas culturais - ou, pior um pouco, coloca-os nas nossas gloriosas madrugadas.
Em boa verdade, o país não tem outra dinâmica cultural que não seja aquela que passou a ser quotidianamente gerada pelo sistema televisivo. Com diferenças significativas no seu interior? Sem dúvida, ainda não chegámos ao ponto em que a maioria dos canais informativos se limita a produzir clones da CMTV - o certo é que, por vezes, parece que é desse modo que alguns dos respetivos protagonistas imaginam a sua missão no tecido social.
O que nos coloca numa situação conjuntural não-reconhecida pela maioria dos protagonistas da política e da televisão (cada vez mais uma coisa parece confundir-se com a outra). A saber: discutir, inventariar ou mesmo cronometrar a presença dos temas culturais nos nossos pequenos ecrãs é uma falácia descritiva que, por vezes, alimenta o mais grosseiro cinismo.
Dito de outro modo: discutir se estão ou não estão a ser cumpridos os “minutos” em que a cultura deve ser matéria televisiva não passa de um medíocre jogo floral sempre ganho pelos que se especializaram em explorar as fraquezas semânticas da expressão “serviço público”.
O que assim se evita é a discussão, não da cultura na televisão, mas da cultura televisiva (novelas, futebol, Reality TV, fulanização da política, secundarização das matérias artísticas) que tomou o poder em Portugal. Bem sei que este meu ponto de vista é ultraminoritário, mesmo no interior da classe jornalística. Em qualquer caso, mais de três décadas depois de uma importante conquista da democracia - o aparecimento de canais privados -, ainda não encontrei uma razão pertinente para desistir de formular e pensar os problemas que nele se convocam. Que problemas? Culturais.