Como não ter medo do Ministério Público?
Há uma frase que nunca esqueci - de um filme, Terminator, de que gosto particularmente por constituir, com Alien, o início de uma saga feminista de ação, algo muito raro até à época (anos oitenta do século XX). É a frase em que o homem vindo do futuro explica à protagonista, interpretada por Linda Hamilton, que com a máquina que veio daquele outro espaço-tempo para a "terminar" não pode argumentar, não pode negociar, não pode pedir misericórdia: porque esta, sendo uma máquina, não atende a nada que não o seu desígnio - matá-la.
Estranho este primeiro parágrafo para um texto sobre o Ministério Público (MP), não é? Podia, claro, ter falado de Kafka para ilustrar o sentimento ante uma máquina destruidora que não admite razão (ou aquilo a que chamamos razão; ela tem a sua), mas dá fastio falar de Kafka a este propósito, até porque cada vez menos gente o leu.
E em que raio é que o MP se parece com a máquina do Terminator, perguntam. Desde logo porque há, como de repente tanta gente parece ter-se dado conta, todos os motivos para termos, todos, inclusive quem não violou qualquer lei, medo dele. E esse medo tem dois motivos; porque não sabemos (só podemos suspeitar) a que racionalidade, se não a única a que devia obedecer - a da lei e do Estado de Direito -, obedece e porque constatamos uma total impossibilidade de comunicação: ninguém fala, no sentido de que ninguém se responsabiliza, por ele.
Na verdade, não existe “o Ministério Público”; existe um corpo de funcionários da justiça sem real hierarquia e sem qualquer (é o que parece) responsabilização que fazem o que entenderem, como entenderem, presidido por alguém que já assegurou - a propósito da revelação, num comunicado não assinado da Procuradoria-Geral da República, das suspeitas sobre António Costa que levaram à respetiva demissão -, não se sentir responsável.
E se Lucília Gago, que acha normal que um comunicado daqueles não surja sequer assinado, que durante o seu mandato, prestes a terminar, nunca deu uma entrevista, não se sente responsável por nada, não podemos pedir-lhe explicações sobre nada nem consequências sobre nada.
Ficamos assim limitados às prolixas asserções do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), sempre pronto para vir a público defender a corporação contra todas as críticas (inclusive as de dentro), acusando-as, invariavelmente, de tentativa de ingerência na “independência do MP” e de defesa de interesses “obscuros” que são sempre os dos “ricos e poderosos que querem ficar acima da justiça”. Já conheço a conversa tão bem que estaria em condições de fazer, com plena satisfação dos seus dirigentes, os comunicados deste sindicato.
O que me espanta, confesso, é que haja tanta gente que parece de repente ter despertado para estes factos. Vejamos por exemplo o comentador e “senador” do PSD Marques Mendes, que este domingo se indignou, no seu sermão semanal na SIC, com a publicitação de uma alegada escuta de um telefonema entre João Galamba e António Costa (enquanto ministro e primeiro-ministro) no qual estes falariam da TAP. Considerando que a divulgação, no momento em que ocorreu, teve uma agenda - “prejudicar a candidatura de António Costa ao Conselho Europeu” -, o social-democrata exortou o Presidente da República, o Governo e o parlamento a reagirem face a este caso, exigindo explicações a Lucília Gago, asseverando que não o fazerem implica que têm medo do MP. É que nem havia motivos para se ter concluído isso - que têm medo do MP - há muito, pois não?
Vejamos por exemplo o ocorrido em 2018: perante a proposta do PSD de Rui Rio de modificar a composição do órgão de fiscalização do MP (o Conselho Superior do Ministério Público) de modo a aumentar o número de membros nomeados pelo parlamento e PR (ou seja, com legitimidade democrática), o então presidente do sindicato, António Ventinhas, rasgou repetidamente as vestes acusando PSD, PS e "os políticos" em geral de quererem "exercer represálias" sobre o MP devido "às investigações que visaram pessoas colocadas nos patamares mais elevados da nossa sociedade", e considerando tratarem-se, as ditas “represálias", de "uma reação normal do poder político ao combate à corrupção”. Assim mesmo: “os políticos” e o “poder político” como sinónimo de corruptos e defensores de corruptos. Em consonância, Lucília Gago ameaçou demitir-se perante o que qualificou como um ataque à “autonomia do MP”.
Anotei à época a ausência de reação, quer dos partidos quer do PR, ao labéu que lhes foi lançado - uma ausência de reação que só posso interpretar como medo, já que o Conselho Superior do Ministério Público não tem qualquer modo de intervir em investigações concretas ou de determinar prioridades gerais de investigação.
Anotei igualmente, como tinha já anotado muitas vezes, a ausência de pudor dos representantes do sindicato, que se apresentam como voz do MP, em evidenciar perante o país o facto de considerarem todos os políticos como suspeitos, num tipo de discurso populista e anti-democrático que viria a ser, logo no ano seguinte, o principal estandarte de um novo partido de extrema-direita - aquele que diz que “é preciso limpar Portugal”, pondo cruzes na cara de dirigentes políticos.
Do mesmo modo, fui ao longo do tempo anotando, com algumas outras - poucas - pessoas, que há muito o MP transcreve (em adoráveis resumos muitas vezes perversamente romanceados, como já referi neste espaço) escutas sem qualquer relevância criminal, que relevam apenas de voyeurismo, maldade e, não raro, espionagem política - mesmo se tudo isso é suposto ficar fora das transcrições. Vimo-lo desde logo no caso Casa Pia, e fomo-lo vendo noutros casos, até agora - quando de repente tanta gente acordou para a insuportabilidade e ilegalidade da prática.
A tal ponto houve quem acordasse que ouvimos Marques Mendes, no seu citado comentário dominical, asseverar que nunca tinha visto divulgar escutas sem relevância criminal. É que francamente.
Foi tal o sobressalto súbito que assistimos ao assolar de muito espírito - incluindo no jornalismo - pela indignação ante a violação do segredo de justiça na divulgação de alegadas escutas. Isto depois de décadas de divulgação de escutas em segredo de justiça nos media e de anos de divulgação de áudios e vídeos de interrogatórios de arguidos e até de inquirições de testemunhas - divulgações que o MP, malgrado tratar-se de crime público, muito raramente decide investigar (mais que fazer, né?). E que quando dão lugar a inquérito podem, como sucedeu no caso de Jarmela Palos, o ex-diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras arguido (e absolvido) no processo Vistos Gold, ser arquivadas pelo MP por considerar que “atendendo à exposição jurisprudencial maioritária, será ineficaz conduzir um processo por conduta de desvirtuamento da legalidade”. Ou seja, era crime mas não fazia mal - o dano causado, achou o MP, não merecia a maçada.
O mesmo, ou o que vai dar ao mesmo, ouvimos, em 2018, da boca de um membro do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, Filipe Preces, num Prós e Contras da RTP. Dizendo-se “desconfortável” com a divulgação de imagens de inquirições do Processo Marquês, "por ser crime" e por "contribuir para a vitimização dos arguidos” (ou seja, acha que podia beneficiá-los, e isso é que nem pensar), Preces justificou, ao vivo e a cores, o crime, argumentando que o processo já não estava em segredo de justiça, que se tratava de “um crime de corrupção, em relação ao qual a lei prevê um escrutínio o mais alargado possível”, e que os inquiridos "são pessoas com elevada notoriedade social, por força das funções políticas e sociais que exerceram e isso leva necessariamente a uma compressão dos seus direitos fundamentais”.
Quem diz “compressão” diz anulação: para os membros do MP como Preces, contra certas pessoas - aquelas em relação às quais se determina uma suspeita de princípio, como vimos nas declarações de Ventinhas - vale tudo; não têm direito a direitos.
Como não ter medo de gente assim, de uma corporação, de um corpo do Estado detentor da ação penal que se deixa, com tão poucos protestos internos (et pour cause) representar assim e - já agora, não esquecer - dos juízes que fazem pandã com isto?