Celebrando o legado de Gabriela Mistral 80 anos depois do Prémio Nobel da Literatura

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Oito décadas após receber o Prémio Nobel da Literatura, Gabriela Mistral permanece como uma das vozes mais luminosas da América Latina. Poetisa, educadora, diplomata e figura moral, ela construiu uma obra e uma vida que ultrapassaram fronteiras geográficas, linguísticas e simbólicas. Nascida Lucila Godoy Alcayaga, em 1889, em Vicuña, transformou a adversidade em matéria poética e fez da escrita uma forma de consolo e combate. Em 1945, quando a Academia Sueca pronunciou o seu nome, o mundo ouviu, pela primeira vez, uma voz latino-americana ecoar no mais alto pódio literário.

A poesia de Mistral, ancorada na força das emoções elementares, funde ritmos andinos com ressonâncias bíblicas e um lirismo tão íntimo quanto universal. Obras como Desolación, Ternura e Lagar revelam uma autora que oscila entre a suavidade da infância e a violência do luto, entre a ternura maternal e a inquietação social. A sua escrita nasce de um gesto duplo: olhar o mundo com o rigor moral de quem sofre por ele e redesenhar esse sofrimento em versos de profundidade quase espiritual.

Mas Mistral não se limitou à poesia. Antes de ganhar o Nobel, percorreu escolas rurais do Chile, levando consigo a convicção de que educar é erguer alicerces de humanidade. No México pós-revolucionário, ajudou a construir um novo projeto educativo; mais tarde, em vários países das Américas, defendeu a alfabetização, as bibliotecas populares e uma pedagogia fundada na dignidade. A sua voz de professora atravessou fronteiras com a mesma naturalidade que a sua poesia.

A diplomacia surgiu quase como extensão do seu impulso pedagógico e humanista. A partir de 1932, ocupou cargos consulares na Europa e nos Estados Unidos, transformando gabinetes oficiais em espaços de mediação cultural e defesa ética. Posicionou-se contra o fascismo nascente, defendeu os direitos das mulheres, das crianças e dos povos indígenas, e colaborou com organizações internacionais. Com ela, a diplomacia latino-americana ganhou um rosto feminino e uma sensibilidade literária incomum.

Portugal ocupa um capítulo singular nessa trajetória. Entre 1935 e 1937, Mistral viveu em Lisboa, onde descobriu uma afinidade profunda com o idioma e o espírito portugueses, e dizia frequentemente que “os deuses compensaram-me dando-me esta doçura de Portugal”. Aqui escreveu os poemas de “Saudade”, inspirado pelo silêncio e pela melancolia da cidade, e considerava o português uma das línguas mais perfeitas para a poesia. Na capital portuguesa, acolheu e ajudou intelectuais espanhóis que fugiam da Guerra Civil espanhola.

A sua condição de mulher num mundo diplomático dominado por homens conferiu à sua presença um caráter quase insurrecional. Mistral desafiou códigos, rejeitou convenções e abriu caminhos que não existiam antes dela. Pagou o preço da ousadia: por vezes, foi vista com desconfiança no Chile que representava. Mas essa tensão apenas reforçou a dimensão simbólica da sua figura — a mulher que, vinda da periferia, ousou erguer-se como consciência moral no palco internacional.

O feminismo encontraria nela, mais tarde, uma precursora. Embora não tenha aderido formalmente aos movimentos da época, a sua vida e a sua obra anteciparam muitas das questões que hoje definem as lutas feministas. A maternidade, tão central na sua escrita, não aparece como destino imposto, mas como ética de cuidado coletivo. A educação surge como libertação. A defesa dos vulneráveis mistura-se com a crítica à desigualdade de género, à pobreza e à herança colonial. Nas suas palavras, as mulheres tornam-se agentes de cultura, cidadãs do mundo e guardiãs de um futuro mais justo.

O legado de Gabriela Mistral é, assim, vasto e plural. Poetisa que deu forma às dores e esperanças do continente; educadora que acreditou no poder transformador do conhecimento; diplomata que levou a América Latina para os palcos decisórios do século XX; mulher que desafiou fronteiras muito antes de a palavra “empoderamento” existir. Oito décadas após o Nobel, a sua voz continua a iluminar debates sobre igualdade, identidade e justiça. E o seu nome, mais do que memória, permanece como presença viva na cultura latino-americana.

Embaixadora do Chile em Portugal

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