As rendas congeladas e o direito humano a um "lucro decente"

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem vindo a condenar políticas de rendas congeladas, considerando que impedem proprietários de obter "um lucro decente" e ordenando compensações por danos sofridos. Uma realidade que governo e PR - e até oposição, associações de proprietários e Provedora de Justiça - parecem ignorar.
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No início desde ano, aquando do anúncio do pacote legislativo Mais Habitação, o governo anunciou que, após 17 anos de promessas e prorrogações sucessivas de prazos para o descongelamento das rendas anteriores a 1990 - as quais correspondem a cerca de 21% do total de contratos de arrendamento (194 mil segundo o INE) - ia manter o congelamento para sempre.

Este anúncio, que desde logo põe em causa o princípio da segurança jurídica, por contradizer medidas legislativas anteriores, parece, no meio da gritaria com outras medidas contidas no pacote - o arrendamento obrigatório, à dinamarquesa, de casas vazias, e as limitações aos Airbnb e no aumento das rendas entre contratos de arrendamento - ter passado bastante despercebido. Tão despercebido que nem na mensagem do PR que veta politicamente o pacote há a ele referência - de resto, nas inúmeras vezes em que aludiu às medidas, o constitucionalista Marcelo nunca, que eu tenha dado conta, mostrou ser sensível ao escândalo que é o congelamento definitivo destas rendas.

Trata-se de resto um assunto que parece interessar a muito pouca gente (incluindo na oposição), havendo dois motivos essenciais para isso: o primeiro é que proprietários destas casas são tipicamente idosos, sem - et pour cause - grandes posses e sobretudo sem peso político como grupo, e o segundo é que se criou a ideia de que os seus inquilinos são todos velhinhos desmunidos a viver em pardieiros, e que aumentar-lhes as rendas seria uma tremenda crueldade.

Ora conhecendo a lei - da qual falei inúmeras vezes aqui - tem de se concluir que o respetivo entendimento de "insuficiência económica", ao englobar todos os agregados que apresentem um rendimento mensal bruto corrigido inferior a cinco retribuições mínimas garantidas (em 2023, cinco vezes 760 euros, ou seja 3800 euros; em 2024, 4050 euros) é uma paródia de mau gosto. E que a imposição de uma taxa de esforço que nunca ultrapassa os 25%, começando nos 10% quando o rendimento do inquilino é até 500 euros, significa que estes agregados saem muitíssimo beneficiados face a quem se candidata a habitação social ou a apoios sociais ao arrendamento (as taxas de esforço indicativas são aí muito mais elevadas, enquanto o nível de rendimento admissível é muito mais baixo). Para além, claro, do óbvio: esta legislação faz assentar exclusivamente nos ombros de privados uma obrigação que é antes de mais do Estado.

E digo antes de mais porque considero - e nisso estou bem acompanhada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e por muitos juristas, como um trabalho publicado esta segunda-feira no DN demonstra - que existe uma função social da propriedade habitacional que também obriga os privados. O que não pode acontecer é que essa obrigação lhes seja imposta de forma desproporcionada e sem qualquer compensação por parte do Estado.

E é isso mesmo que se passa desde 1990: os proprietários dos locados com rendas congeladas nunca beneficiaram sequer, e continuam neste momento a não beneficiar, de qualquer desconto no IRS - isto enquanto desde 2019 que esses descontos existem, em função da respetiva duração, para novos contratos. Sendo verdade que o pacote Mais Habitação prevê tal desconto, chega 33 anos atrasado - 33 anos nos quais os proprietários destas casas mantiveram todos os deveres normais de senhorios, sendo obrigados a, no caso de terem de proceder a obras, recorrer a fundos de outra proveniência que não as rendas miseráveis que recebem.

Isto não é só uma indecência para qualquer pessoa dotada de razão e sentido ético: é, à luz da jurisprudência do TEDH, uma violação do direito à propriedade, consagrado na Convenção Europeia dos Direitos Humanos como protegendo os indivíduos ou sujeitos jurídicos "de interferência arbitrária do Estado na sua propriedade". Em decisões relativas a uma série de países europeus - Noruega, Polónia, Eslováquia, Croácia, Malta, Albânia, etc - o tribunal tem vindo a condenar os estados que mantinham rendas congeladas, considerando que tais medidas penalizam demasiado os senhorios, fazendo assentar sobre eles um "fardo desproporcionado" e impedindo-os de retirar um rendimento da sua propriedade que lhes permita fazer face aos custos de manutenção e obter "um lucro decente".

Em Bittó e Outros contra a Eslováquia, de 2014, o TEDH decidiu por unanimidade que existia uma violação do direito à propriedade de 21 senhorios, uma vez que apesar de a partir de 2000 lhes ter sido dada a hipótese de subirem um pouco - com limites fixados pela lei - as rendas que antes tinha estado congeladas, estas continuavam "consideravelmente mais baixas que as de locados semelhantes não sujeitos a esse controlo" e que os interesses dos requerentes, "incluindo o seu direito a retirar lucro da sua propriedade", não estavam a ser respeitados. Explicam os juízes de Estrasburgo nesse acórdão, como noutros sobre rendas congeladas, que os legítimos interesses da comunidade exigem uma distribuição equitativa dos encargos financeiros e sociais envolvidos na transformação e reforma do parque habitacional do país, e que este encargo não pode ser alocado apenas a um grupo social, por mais importantes que sejam os interesses de outro grupo ou da comunidade como um todo. Assim, a conclusão é de que as autoridades eslovacas não respeitaram o justo equilíbrio entre os interesses gerais da comunidade e a proteção do direito à propriedade dos requerentes.

Interessante é notar que mesmo em países nos quais os congelamentos de rendas foram considerados inconstitucionais, como se passou por exemplo em Malta e na Polónia (aqui por iniciativa do Provedor de Justiça), ainda assim os estados em causa foram condenados pelo TEDH por este considerar que os "remédios" legais encontrados para resolver o problema e compensar os proprietários não foram eficazes e justos. É o caso de Hutten-Czapska contra a Polónia, de 2006, e de várias decisões do tribunal contra Malta, a última das quais, Bartolo Parnis e Outros, de 2021.

Estas decisões são tanto mais relevantes quando o pacote Mais Habitação promete uma "compensação ao senhorio, a regulamentar, pelo não aumento de rendas", sem que até agora, mais de seis meses passados sobre o anúncio, tenha sido dada qualquer indicação de qual e como - e o Orçamento de Estado de 2024 está à porta.

Aliás o executivo anunciou um "estudo" sobre as rendas congeladas, com vista à regulamentação dessa "compensação", do qual nunca mais se ouviu falar, quando a lei em vigor já previa que, havendo descongelamento das rendas anteriores a 1990, estas tinham o limite anual de 1/15 do valor patrimonial do imóvel e haveria um subsídio de renda para pagar a diferença entre o valor da renda congelada e o da nova renda controlada. E, ainda - o que é verdadeiramente extraordinário - o ajustamento à nova renda decorreria num período de 10 anos, com aumentos escalonados (adicionando-se assim mais uma décadazinha de congelamento às que essas rendas contabilizam; coisa pouca).

Por qualquer motivo que nunca foi explicado, o governo acha que essa solução - subsidiar a renda destes inquilinos, como está a fazer com muitos outros - não serve e o que é adequado é "uma compensação" direta aos senhorios, a formular lá mais para a frente, claro. Parece cada vez mais evidente que este problema, como sucedeu noutros países, só se resolverá em Estrasburgo. A violação dos direitos humanos de umas 190 mil pessoas - os senhorios que durante décadas garantiram, à sua exclusiva custa, uma bela percentagem de habitação social num país no qual a estatal só corresponde a 2% do total de alojamentos - é, pelos vistos, o lado para que parlamento, executivo, Presidente da República e até a Provedora de Justiça dormem melhor.

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