Ardemos porque não aprendemos nem cumprimos

Publicado a
Leonardo Negrão

Depois dos trágicos incêndios de 2017 registou-se um progresso considerável na preparação de uma estratégia para a prevençao e combate dos fogos em Portugal. Foram tomadas medidas de política pública, discutidas com especialistas, participadas por agentes locais e acompanhadas por relatórios periódicos da Agência para a Gestão dos Incêndios Florestais (AGIF).

Os resultados foram, pelo menos até final de 2024, menos ignições, menos área ardida, mais recursos, mais orçamento.

A média da área ardida caiu 59%, o número de incêndios reduziu-se em 63% e o orçamento anual multiplicou-se por 4,5. A distribuição de verbas também se alterou, deixando para trás o modelo centrado quase exclusivamente no combate (80%) e passando para uma lógica mais equilibrada, com 55% em prevenção e 45% em combate. Houve igualmente um reforço de 45% nos recursos humanos, enquanto os “grandes incêndios” se mantiveram dentro da média histórica.

Mas este verão voltou a mostrar que o problema estrutural permanece. As condições meteorológicas extremas – e até agora foram 22 dias consecutivos de elevada severidade com temperaturas acima de 40 graus em várias regiões e humidade relativa mínima inferior a 20% - potenciam os incêndios, mas a vulnerabilidade principal está na dificuldade em controlar os fogos que escapam à primeira intervenção.

Como sublinhou Paulo Fernandes, investigador da UTAD, em entrevista ao DN nesta edição “quando os incêndios se tornam grandes, nunca conseguimos melhorar”. Os reacendimentos sucessivos, a falta de consolidação de perímetros e a ausência de equipas especializadas suficientes explicam porque é que incêndios semelhantes duram menos dias em Espanha do que em Portugal.

Temos o maior dispositivo de sempre – 14.155 operacionais, 3.162 viaturas e 72 meios aéreos. Nunca se investiu tanto em prevenção, em vigilância, em tecnologia. Mas, apesar de tudo, continuamos a ver aldeias cercadas por mato, reacendimentos não combatidos a tempo, populações que sentem abandono e autarcas que denunciam descoordenação. Continuamos a repetir erros conhecidos.

Arderam, até ao final do dia deste domingo, 173 mil hectares em 6346 incêndios. Comparando com iguais períodos, esta área já é a segunda maior nos últimos 10 anos - a primeira é ainda 2017.

Ardemos porque não aprendemos nem cumprimos tudo. Porque, além do planeamento, falta cumprir no terreno o que está desenhado nos relatórios e aprovado nas estratégias. A evolução das despesas descrita no Sistema Integrado de Gestão dos Fogos Rurais (SGIFR) mostra que entre 2020 e 2024 a despesa executada alcançou os 2,5 mil milhões de euros, menos 808 milhões do que o previsto.

Em seis anos, o Plano Nacional de Ação para prevenir os fogos rurais, que prevê 97 projetos, alcançou 42% dos objetivos, mas ainda tem por executar 58% até 2030.

Se há lição que o verão de 2025 já deixou, é esta: o dispositivo pode ser maior do que nunca, mas não basta somar meios. O combate aos incêndios rurais exige uma lógica de guerra: é preciso planeamento antecipado, cenários estudados, logística garantida, coordenação sem falhas e meios disponíveis no momento certo. Se uma falha ocorre num destes pontos, o “inimigo” – o fogo – ganha terreno rapidamente. Os relatórios do SGIFR confirmam que houve avanços no cumprimento das ações previstas, mas também revelam atrasos.

Em 2024, por exemplo, várias medidas de gestão de combustível e de reorganização da paisagem ficaram aquém das metas, o que significa que parte do “plano de batalha” não foi executado a tempo.

Esta discrepância entre planeado e realizado continua a ser um dos calcanhares de Aquiles do sistema: investe-se mais, planeia-se melhor, mas nem sempre se cumpre no terreno. planeamento antecipado, capacidade de mobilização, treino especializado, disciplina no terreno e avaliação permanente.

É preciso unir esforços, quem sabe criar uma única unidade que permita tirar as descoordenações da equação. Sobre 2024, ano com menos ignições do que a média anterior, a área ardida foi mais o dobro da média do quinquénio, a AGIF assinalou, elegantemente, que a “resposta operacional enfrentou desafios na antecipação, comunicação e mobilização de recursos” que “contribuíram para a propagação de incêndios de grande escala, especialmente no Norte e Centro Litoral”.

Sinalizou que “a resposta apresentou ainda algumas debilidades, nomeadamente na capacidade instalada para gerir com eficácia em simultâneo vários eventos complexos, agravadas pela incompleta gestão dos espaços rurais, necessidade de mais fiscalização, sobretudo nas zonas de interface urbano-rural e também de programas mais eficazes de segurança comunitária”.

Se não quisermos que cada verão seja apenas mais uma prova de resistência, é preciso reconhecer que os incêndios não se combatem apenas em agosto. Combatem-se em janeiro, na gestão do território, no ordenamento da floresta, no reforço das qualificações das equipas. Sem isso, cada ano será sempre o mesmo, só com mais meios e mais despesas – mas também com mais cinzas.

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