Altos cargos, estatuto intransparente

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Há um certo número de altos cargos em relação aos quais acreditamos ter ideias seguras - e respostas prontas e simples - sobre a sua natureza, processo de escolha, modo de prestação de contas, responsabilidade, etc. Há, porém, outros, velhos e novos, às vezes com missões de grande relevância, de que estamos longe de poder dizer o mesmo. Nalguns casos estão mesmo sujeitos a sérias divergências interpretativas, nas suas mais directas esferas de relevância, sem que o grande público disso se aperceba. Apenas um exemplo, circunstancialmente em grande evidência: o cargo de procurador-geral da República.

Sob o mesmo ordenamento constitucional, eminentes juristas já defenderam tratar-se de “cargo político” (e não foi o ex-presidente Cavaco Silva que entendeu, em caso concreto , que não se aplicava ao seu titular o limite legal dos 70 anos?); académicos de vulto não hesitaram em sustentar a sua natureza “administrativa”, classificando até o tipo de administração em que o inseriam; e outros, em vasto número, avançam, hesitando pouco, a natureza “judicial” do cargo.

Vozes consagradas, anotando a Constituição, começaram por explicitar, em tempo distante, que “o PGR surge desenhado na Constituição como órgão de responsabilidade política”, sublinhando, mais tarde, o que parece incontroverso: que “não é constitucionalmente transparente o estatuto constitucional do PGR.”

Com este panorama quanto à natureza, e com a origem dessa intransparência atribuída assim à própria Constituição, é fácil antever a repercussão desta falta de nitidez na pluralidade das respostas noutros capítulos muito relevantes (escolha, escrutínio, responsabilidade). Há consequências disso que levam tempo a revelar-se - mas a gravidade delas não perde com isso, bem pelo contrário.

Longe de pretender voltar ao tópico em tempo de férias judiciais (uma história também digna de ser algum dia contada…), o que com esta passageira alusão pretendo introduzir é matéria, na aparência, distante. Ocorrendo esta ambiguidade com cargos de velha história, como este, recortados no âmago dum Estado que, em ritmo crescente, se concebe como “Estado-membro” - é irresistível observar , em paralelo, que problemas de definição, disputas interpretativas e controvérsias derivadas iniciam ou prosseguem o seu curso em relação a altos cargos no nível europeu. Com um traço em fundo: qualquer “intransparência de estatuto” é agravada pela circunstância de se inserir num complexo institucional de que já se disse ser “uma organização política não-identificada.”

Isto tem aplicação aos altos cargos reconfigurados ou criados já neste século, nomeadamente o de alto representante para os Assuntos Externos e o de presidente do Conselho Europeu. No relativamente curto período que levam de vida, quer a academia quer outros meios com interesse na área, já se envolveram em diversos ensaios de qualificação, a maioria combinando - mas fazendo-o em proporções bem variáveis - o estatuto de “cargo político” e o de uma “alta Função Pública internacional” (para não dizer “pós-nacional”).

A elaboração desta última categoria tem sido estimulada pela multiplicação de organizações internacionais, e surgimento de estruturas supranacionais, e tem tomado como ponto de partida o cargo de secretário-geral das Nações Unidas - que é , esse expressamente, definido como “o primeiro funcionário” da própria instituição “servida”. Talvez por isso, o seu domínio de aplicação mais desenvolvido seja, nesta altura, o da “acção externa” de tais entidades (que vai agora da “condução” à “representação”).

Incentiva esta visão híbrida o facto seguinte: ainda quando os processos de recrutamento se circunscrevem ao domínio político ou supõem mesmo exercício prévio de certos cargos políticos nacionais, os vínculos estabelecidos, às vezes bem curtos e até, teoricamente, “precarizados”, fazem-se acompanhar, com frequência, de um acervo de restrições, exigências de exclusividade e lealdade às instituições servidas, contrapartidas condicionais de caráter vitalício, etc… que são típicas, no domínio estadual, duma chamada “alta Função Pública.”

Tendo participado, em representação do Parlamento nacional, nos trabalhos da “Convenção” de que saiu o molde de alguns dos actuais top jobs, impressionou-me desde o início o repetido recurso a qualificações como “full time”, “exclusividade”, e, em particular, a ênfase posta numa “proibição de exercício de cargos nacionais” (que, acrescente-se, acabaria por deixar traço duradouro no tratado vigente).

Ao deparar hoje com construções, jurídicas e outras, entretanto surgidas, não posso deixar de encontrar sentido nalgumas leituras “híbridas” que têm sido avançadas. Mas justificar-se-á ver caso a caso.


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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