“Matou o marido. Rotulou a mulher como terrorista - típico de Putin.” Yulia Navalnaya .A recente emissão, pelas autoridades russas, de um mandado de detenção contra Yulia Navalnaya, viúva de Alexei Navalny, sublinha o compromisso do regime russo no sentido da erradicação dequaisquer vestígios de oposição..Considerada pela revista Times uma das mais influentes figuras do ano, Yulia prometeu que manteria viva a chama da resistência contra um regime que se transformou, ao longo das últimas três décadas, num paradigma de autocracia contemporânea..O paradigma autocrático de Putin alicerça-se em metodologias multifacetadas, que vão desde o meticuloso controlo dos media até à implacável supressão de quaisquer sinais de dissidência, não esquecendo a empreendedora criação de partidos fictícios..O controlo dos meios de comunicação é pedra angular da estratégia do Kremlin, permitindo não apenas a supressão de informação desfavorável, mas também a criação de uma narrativa alternativa que serve os seus interesses. A astuciosa manipulação da mensagem mediática - assente na censura, na disseminação de desinformação, na glorificação do regime e na demonização dos seus opositores - molda a realidade facultada ao público..Vladimir Putin, o autocrata russo, que arraz tudo o que lhe faça oposição ou ao seu regime. FOTO: Pavel Byrkin / Pool / AFP.No âmago desta estratégia encontramos, também, a criação de partidos políticos fictícios, que fragmentam e diluem qualquer oposição genuína, garantindo que ameaças potenciais ao poder de Putin são prontamente erradicadas. Através de mecanismos aparentemente democráticos, é fabricada uma miragem de pluralismo político que esconde um regime profundamente autoritário..Por último, a brutal repressão de qualquer sopro de dissidência, faceta inequivocamente perturbadora do regime, tem incluído medidas que vão desde a via judicial (com possibilidade de estadia prolongada em colónias penais no Árctico) a soluções mais incisivas (que não parecem excluir a morte prematura)..Os trágicos destinos de Boris Nemtsov (alvejado numa rua de Moscovo) e de Vladimir Kara-Murza (alvo de um julgamento que lembrou os de dissidentes soviéticos nos Anos 60 e 70) são testemunhos sombrios dos perigos enfrentados por quem ousa opor-se a Putin..A vasta revisão constitucional de 2020 acrescentou um pilar temporal ao regime, legitimando o exercício de mais dois mandatos presidenciais por Putin (isto é, a sua governação até 2036) e eliminando, efectivamente, a possibilidade de alternância no poder; encerrando qualquer esperança de transição política em moldes democráticos..Para além de consolidar o poder de Putin, as novas normas constitucionais abrangem a proibição de cedência de território (irónica proibição considerando a anexação prévia da Crimeia) e a declaração da supremacia da lei nacional sobre a lei internacional (conveniente declaração atenta a violação contínua da lei internacional pela Rússia), reflectindo um nacionalismo exacerbado bem como desprezo pela ordem internacional..Seguiu-se a invasão da Ucrânia, que levou à implementação de severas medidas repressivas a nível nacional, reavivando usos e costumes estalinistas, de vigilância mútua e de denúncia entre cidadãos..Exemplo desta prática foi a denúncia de Masha Moskaleva, pelo director da escola que frequentava, por ter feito um desenho que expressava sentimentos pacifistas. Masha foi enviada para um orfanato e o pai, Alexei Moskalev, foi condenado a dois anos de prisão por repetidas críticas ao Exército russo nas redes sociais..Também no campo cultural surgem acusações absurdas e condenações severas. A cultura, que deveria ser um espaço de reflexão é cerceada pelo autoritarismo estatal. A recente condenação de Svetlana Petriychuk e Evgeniya Berkovich a 6 anos de prisão (respectivamente pela criação e encenação de uma aclamada peça de teatro) comprova a intolerância do regime para com qualquer forma de expressão que considere desviar-se da linha oficial..Como notou o dramaturgo exilado, Mikhail Durnenkov, a lógica do tribunal teria levado “à condenação de Dostoyevsky por homicídio, de Pushkin por incêndio e roubo e de Tolstoy por instigação à guerra”..Os eventos supracitados pintam um quadro sombrio da Rússia sob Putin, onde convergem o controlo da informação, a supressão da dissidência e a manipulação da lei e das instituições, tecendo uma atmosfera opressiva no seio da sociedade civil..No paradigma autocrático de Putin, qual sofisticada versão do despotismo soviético, velhos mecanismos foram adaptados aos novos tempos, demonstrando que a tirania pode ser reinventada, mantendo, simultaneamente, raízes profundamente ancoradas no passado..Neste cenário sombrio, o legado de Navalny e a luta de Yulia emergem como faróis de coragem e de resiliência, fornecendo esperança perante um regime implacável, um fio de luz num panorama encoberto pela repressão, lembrando que nada apaga por completo a chama da resistência humana. Nota: A autora não escreve de acordo com o novo Acordo Ortográfico