A nova 'Muralha Vermelha'

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Donald Trump mudou o mapa político da América: à base branca e geralmente pouco qualificada que lhe deu vitória curta e minoritária no voto popular em 2016 aliou ganhos imensos nos hispânicos (sobretudo), mas também nos homens brancos, nas mulheres brancas e nos negros.

Agarrou parte das classes mais endinheiradas com o argumento da baixa de impostos. E conquistou a classe trabalhadora branca, com percentagens bem superiores a há oito anos, reconquistando ganhos que os democratas tinham recuperado com Biden em 2020 nesses segmentos.

O que impressiona na vitória de Trump é que em zonas onde já tinha forte vantagem (condados rurais no Midwest e pelo resto do país) somou ganhos particularmente expressivos. Kamala Harris perdeu quase metade dos condados da Pensilvânia por diferenças de 40 pontos ou mais.

Outro aspeto fundamental da vitória de Trump: há quatro anos, Biden conquistou o Michigan por força de enorme vantagem no Condado de Wayne (1,8 milhões de pessoas, zona urbana de Detroit). Ora, desta vez Trump agarrou mais de um terço do voto que tinha ido para Biden nesse condado fundamental. E em Oakland, importante zona do subúrbio, a participação maciça de 75% há quatro anos de eleitorado pró-democrata foi, desta vez, de menos 112 mil votos - fatal para as contas de Kamala Harris. Oakland tinha sido, por exemplo, onde Nikki Haley melhor desempenhou nas Primárias contra Trump. Os republicanos moderados que restavam no Michigan, mesmo não tendo qualquer vontade de votar em Trump, também não se sentiram motivados a votar em Kamala.

A “Muralha Azul”, última esperança de Kamala Harris durante a noite eleitoral, à medida que a vantagem de Trump se ia verificando nas primeiras horas na Geórgia e na Carolina do Norte, ruiu estrondosamente.

A Eleição Presidencial de 2024 mostrou-nos uma nova Muralha Vermelha: com Trump, os republicanos conquistaram decisivamente a Cintura da Ferrugem.

Kamala bem abaixo de Biden 2020

Donald Trump subiu percentualmente no voto popular (pela primeira vez em duas décadas, o nomeado presidencial republicano teve mais votos que o nomeado democrata) e melhorou desempenho em quase todos os segmentos. Nos independentes, área ganha por Biden por 11 pontos em 2020, Trump bateu Kamala por 10 pontos percentuais desta vez.

Ainda assim, Trump ficou com uma votação em números absolutos idêntica a há quatro anos (74,2 milhões). A grande diferença é que Kamala se posicionou bem abaixo do desempenho de Biden 2020: 70,3 milhões, pouco se comparado com os 81,2 milhões de Joe há quatro anos.

Essa diferença não revela uma queda global do desempenho democrata nestas eleições. O que mostra, essencialmente, é que Kamala foi uma candidata presidencial falhada: não foi capaz de mobilizar o que precisava, não foi capaz de inibir o voto em Trump, apesar do argumento da suposta inaceitabilidade do seu regresso à Casa Branca.

A maior prova disso é a discrepância entre as vitórias de Trump sobre Kamala em todos os Estados decisivos e os triunfos de candidatos democratas para outras eleições nos mesmos territórios: são os casos da senadora Tammy Baldwin, reeleita no Wisconsin; da senadora Jacky Rosen reeleita no Nevada; da congressista Elissa Slotkin, eleita para o Senado pelo Michigan; do senador Ruben Gallego, eleito no Arizona; ou do democrata Josh Stein, eleito governador da Carolina do Norte.

Só na Pensilvânia se pode falar num alinhamento entre o sucesso de Trump e o falhanço de Kamala para a corrida presidencial e uma consequência para benefício republicano, no triunfo de David McCormick, numa corrida ao Senado especialmente disputada com o democrata Bob Casey. E não terá sido por acaso: a Pensilvânia é um caso que merecerá estudo aprofundado nas próximas semanas.

Boa parte dos 119 milhões de dólares da Super PAC de Elon Musk foram aplicados na Pensilvânia.

Os democratas perderam a plataforma

Durante duas décadas, os democratas mantiveram a maioria do voto popular na América por força da soma de uma percentagem muito significativa do voto branco (embora abaixo dos republicanos) com vantagens enormes que mantinham nos outros segmentos: negros, hispânicos e também mulheres e jovens.

Isso levou a que Trump tivesse sido eleito em 2016 sem a maioria do voto popular e fosse presidente por quatro anos sem ter tido um único dia com mais de 50% de aprovação.

Ora, todos os pressupostos incluídos nos dois parágrafos anteriores ruíram como um castelo de cartas a 5 de novembro de 2024.

Trump passou a ser maioritário no todo nacional. Os hispânicos praticamente dividiram-se a meio no apoio entre democratas e republicanos (com Biden, davam dois terços aos democratas). Os negros ainda são amplamente democratas, mas já não na proporção esmagadora de nove para um.

Para lá da renovação geracional, adiada pelo hábito de vitória nas últimas três décadas, os democratas precisam de encontrar uma nova plataforma política.

O tempo das maiorias presidenciais de Clinton, Obama e Biden acabou. Deu para cinco mandatos presidenciais, deu para várias maiorias no Congresso e nos Governos Estaduais. Mas o liberalismo clássico de Bill Clinton, somado a um toque sulista de compreender a América profunda, o charme retórico com um lado moral de Barack Obama ou o Midwestern branco, blue collar terra a terra de Joe Biden, são coisas do passado.

Os democratas têm de adaptar-se a esta era Trump 2.0, que dominará os próximos anos da política americana. Para lá das novas caras (Gretchen Whitmer, Pete Buttigieg, Gavin Newsom, Josh Shapiro), interessa perceber que novo Partido Democrata virá aí. Mais securitário? Menos aberto à diversidade? Mais realista na gestão da imigração?

A imigração

Falemos, então, de imigração.

Para lá do assunto economia (dois terços dos americanos dizem que se sentiam melhor na Presidência Trump, sendo que 70% deles votaram Trump a 5 de novembro), Trump ganhou por causa da imigração. Na entrevista à NBC News, o presidente eleito diz que “não temos alternativa, custe o que custar, não há fasquia de preço, temos de fazer a maior deportação da História. Vamos fazê-la”.

A sério? Vão mesmo?

Os EUA estão em pleno emprego: 4,1%. Uma suposta deportação de 11 milhões de imigrantes ilegais (Mike Johnson avançou que seriam primeiro uns 4,5 milhões, com o critério de terem algum tipo de condenações, mesmo que apenas delitos comuns) seria especialmente danoso para a economia norte-americana. Com uma súbita perda de mão-de-obra (barata, ainda por cima), os pequenos negócios um pouco por toda a América sofreriam particularmente.

Suprema ironia do alegado grande trunfo para a economia americana, Donald Trump: as duas principais medidas que propõe - deportação em massa e tarifas gigantes - causariam desemprego, inflação e eventuais falências. O problema é que, na retórica de campanha, Trump lançava ligações abusivas do estilo ‘a deportação em massa vai fazer descer os preços da habitação’.

Uma deportação em massa da dimensão prometida por Trump e Vance seria uma abjeção desumana que levaria a imagens terríveis de famílias a serem separadas em pleno território norte-americano. Teria um custo inimaginável - estima-se que pelos 315 mil milhões de dólares, seis vezes a ajuda militar dos EUA à Ucrânia em todo o ano de 2024. Exigiria medidas robustas do Departamento de Justiça e do Pentágono para que se encontrasse quadro legal. Obrigaria a milhões (sim, milhões) de diligências judiciais - os EUA ainda são um Estado de Direito e antes de deportar alguém há que fazer uma notificação, conceder um tempo de carência, realizar uma audição antes da execução da medida.

Embalados na “era dourada” que Trump promete, os eleitores americanos escolheram livremente. São, obviamente, responsáveis pela opção que quiseram fazer.

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