A limpeza do Montijo começa pela memória

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Os cartazes estão espalhados por toda a parte, em todas as freguesias do concelho. Mostram o rosto do candidato autárquico, Nuno Valente, e o do líder do Chega, André Ventura, e em letras garrafais lê-se: “Vamos limpar o Montijo”. Ninguém imagina que algum dos dois vá realmente para a rua limpar alguma coisa, de vassoura na mão e fato de trabalhador de higiene urbana vestido. Por outro lado, tendo em conta o recorrente discurso antiimigração do Chega e o crescimento inequívoco do número de migrantes no concelho – tanto nas zonas mais urbanas, traduzida, por exemplo, na abertura de dezenas de pequenos negócios na cidade, como em áreas mais rurais, como é o caso de Pegões onde a mão de obra para a agricultura é sobretudo estrangeira, oriunda do subcontinente indiano –, é relativamente fácil associar e identificar quem são os destinatários desta ‘limpeza’ (palavra, aliás, usada em mais campanhas eleitorais das autárquicas, como é o caso da Amadora).

Segundo os Censos de 2021, a população migrante residente no Montijo correspondia a 10,8% do total, sendo que hoje a percentagem já será muito maior. Nesse intervalo de tempo, o Chega cresceu, e muito, nas votações do município para as legislativas. Se em 2024 foi a segunda força mais votada (24,80%, perdendo apenas para o PS - 26,95%), em maio de 2025 o partido de André Ventura saltou para a frente com 31,41% dos votos, superando a AD (23,72%) e o PS (20,69%). Nas autárquicas de outubro, Nuno Valente é, por isso, um sério candidato a liderar uma câmara que está nas mãos do PS desde 1997. Para mais tendo em conta que o eleitorado do PS está dividido – além do candidato oficial do partido, Ricardo Bernardes, surgiu a candidatura independente de Fernando Caria, que até aqui liderava a Junta de Freguesia eleito pelos socialistas – e que o PSD teve de trocar de candidato a meio do caminho, após um desentendimento entre o líder local João Afonso e o presidente social-democrata, Luís Montenegro, quando o vereador do PSD se referiu à ministra da Saúde, Ana Paula Martins, como um “cadáver político” (em 2021, o PSD, com João Afonso, ficou a apenas 350 votos de ganhar a autarquia).

Aparentemente, é esta aversão do Chega por quem vem de fora que lhe dá força no Montijo, o que não deixa de ser caricato. Isto porque as grandes transformações sociais do concelho, que o desenvolveram, aconteceram precisamente graças a movimentos migratórios. Primeiro nas décadas de 60 e 70 do século passado, quando as então pujantes indústrias corticeira e de abate e transformação de carne de porco atraíram trabalhadores vindo de todos os cantos de Portugal e, mais tarde, a partir de 1998, quando a inauguração da ponte Vasco da Gama (e consequente aproximação a Lisboa) chamou milhares de novos moradores, portugueses e estrangeiros, que encontraram nesta localidade da Margem Sul do Tejo habitações mais baratas e espaçosas, às portas da capital. A memória curta tem destas coisas: abre a porta a argumentos que contradizem a verdadeira história local. E há sempre que veja nisso uma oportunidade para fazer valer os seus interesses.

Editor Executivo do Diário de Notícias

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