Jean Blanchard nasceu em Bourges, França, no dia 19 de setembro de 1948, e morreu há poucos dias, a 28 de outubro. Era um músico multi-instrumentista que conseguiu orbitar vários universos, mas foi através das cornemuses (gaitas de fole francesas) que encontrou o ponto de equilíbrio da sua expressão. Não sei de grandes ligações de Jean Blanchard a Portugal, pelo que compreendo que possa ter passado despercebido, à exceção da participação no espetáculo da coreógrafa portuguesa Tânia Carvalho intitulado The Recoil of Words, de 2013. É é por aqui que vou.Estão três bailarinos em palco, incluindo a própria Tânia Carvalho. Movem-se como se estivessem assolados pelo peso de uma idade avançada, mas em síncope, o que sugere que os movimentos são mais ágeis do que parecem ser. Nos primeiros minutos, estão em silêncio, a dançar na escuridão. O silêncio (e o breu) só é quebrado pela luz que acompanha Jean Blanchard, que entretanto entra em cena, com a cornemuse, o que conduz a uma divisão da atenção do público entre os bailarinos e aquele instrumento alienígena que agora ali está, com um fole e uns tubos que dele saem. O músico, numa primeira fase, só aciona os bordões (aqueles tubos que nas gaitas de fole fazem um som constante), com um efeito que, por meio de um processo eletrónico, é fantasmagórico. A música é de Julia Wolfe. Jean Blanchard começa uma melodia que, a certa altura, quando o público dá conta, está dividida em sete, todas ao mesmo tempo. O conceito da música funde-se com o da coreografia e tudo faz sentido. É um instrumento ancestral que está integrado na dança contemporânea, como se dali nunca tivesse saído, ainda que ali nunca tivesse estado. E assim se mantém..Reza a lenda, apoiada em relatos do próprio, que Jean Blanchard comprou a sua primeira cornemuse num antiquário em Lyon. Era uma musette Béchonnet construída em 1871 que, ao contrário do que era frequente, não era tocada com um barquim (um fole muito semelhante aos foles das lareiras, que serve para encher o outro fole), mas com um soprete (tubo que permite encher o fole diretamente com a boca, como é comum em grande parte das gaitas de fole).Não sei se foi com essa musette Béchonnet que Jean Blanchard compôs a La Coccinelle (a joaninha, como o inseto), mas quero acreditar que sim. É uma bourrée a três tempos (uma dança tradicional francesa) que provoca nos dançarinos vontade de saltar e deslizar, como quase todas as bourrées. Mas esta sugere mesmo que somos joaninhas numa tarde de primavera, a ser levadas pelo vento. Parece que Jean Blanchard abusa da técnica conhecida como rappel, que consiste em tocar a tónica daquela música (que neste caso é um Sol) entre cada uma das notas da melodia. O efeito final é uma espécie de polifonia espectral, como se estivessem dois instrumentos a tocar em simultâneo, quando não estão. Ainda bem que ele a compôs e que podemos saltar quando a ouvimos. Até porque dificilmente cairá no esquecimento, tendo em conta que a La Coccinelle continua a ser tocada por outros músicos, como os acordeonistas Andy Cutting e Anne Niepold.Mas Jean Blanchard é vasto. Fundou a banda La Bamboche em 1972, junto com Bernard Blanc - um outro especialista em cornemuses. As fotografias das capas dos álbuns remetem para um glorioso período de liberdade recente (na altura), com cabelos e barbas compridas, que Jean Blanchard manteve como imagem de marca. São calças à boca-de-sino e música antiga, de matriz rural, que nessa altura estava a ser reinventada e que era um símbolo de uma cultura urbana. É assim o advento do folk em França, tal como o foi em Portugal com tantos músicos, como José Afonso, Fausto, José Mário Branco e Júlio Pereira, entre outros.Jean Blanchard esteve ativo até ao último momento e passou por formações musicais como o trio Merle Rouge, onde, com Gwenaëlle Pineau, na concertina, e Laurence Dupré, no violino, recriava a tradição musical de Auvergne.Em Auvergnatus, a tradição musical daquela região francesa atinge outro nível, com Jean Blanchard a dedicar-se ao banjo tenor, ficando a cabrette (outra gaita de fole francesa) a cargo de Fabrice Lenormand.No fundo, Jean Blanchard é simultaneamente herdeiro e transmissor de uma prática musical ancestral num país que tem mais gaitas de fole, com morfologias diferentes, do que qualquer outro (sim, é aqui que revelo que as gaitas de fole não foram inventadas na Escócia; também as há em Portugal e em qualquer país entre a Índia e o Norte de África, apesar de ser em França que ocorre a maior variedade). O músico morreu, mas não desapareceu.