A ilusão nuclear
Devemos mesmo temer uma Rússia nuclear? Sim e não. Sim, porque Vladimir Putin controla o maior arsenal do mundo. Não, porque, como dizia o último general norte-americano de cinco estrelas, Omar Bradley, “as armas nucleares servem para não ser usadas”.
O Kremlin sabe que tem mísseis hipersónicos que podem transportar ogivas nucleares, capazes de atingir as capitais europeias (Londres e Lisboa incluídas) em poucos minutos. Mas também sabe que, se o fizesse, as consequências para Moscovo e para o regime de Putin seriam catastróficas.
A menos que Putin, que está no poder em Moscovo há quase um quarto de século, deixasse de ser um ator racional (à luz dos seus interesses, não dos nossos), vamos manter a linha de raciocínio de que não haverá o uso de armas nucleares russas em espaço NATO - até porque, se tal cenário-limite acontecesse, só ocorreria uma vez.
Nas décadas de Guerra Fria entre Washington e Moscovo, marcadas pelo “equilíbrio pelo terror”, o risco nuclear foi a maior e melhor dissuasão: garantiu que EUA e URSS nunca tivessem tido uma verdadeira conflagração direta.
Aplicada ao momento atual, a questão nuclear nem sequer configura uma dissuasão: será mais uma ilusão. Basta imaginar que reação teria a China, da qual a Rússia, neste momento, depende para contornar as sanções do Ocidente, se Putin usasse mesmo as armas nucleares. Até agora, Pequim tem sido um travão importante - ou não fosse a China uma especial interessada em que esse cenário nunca venha a verificar-se.
Nestes 1005 dias de invasão da Ucrânia, a Rússia de Putin agitou o fantasma nuclear sempre que se sentiu acossada. Isso voltou a acontecer desta vez, após a autorização de Joe Biden para o uso, por parte da Ucrânia, de mísseis táticos de alcance médio de fabrico norte-americano em solo russo. Os ATACMS são mísseis capazes de alcançar alvos até 300 quilómetros de distância. Os EUA têm-nos há 38 anos e começaram a usá-los na primeira guerra do Golfo (1991, Bush pai). Podem ser usados contra alvos militares em movimento e têm como função primordial atacar alvos de alto valor das forças de retaguarda: campos de aviação, forças de artilharia, áreas de abastecimento, grupos de comando.
Por que é que Biden avançou para esta autorização, depois de quase dois anos de adiamentos? Essencialmente, por três razões: para reforçar a posição negocial da Ucrânia, a dois meses do regresso de Trump à Casa Branca; para deixar como marca principal do fim da sua Presidência a travagem da agressão russa em espaço europeu, sinalizando que a presença da Coreia do Norte é uma linha vermelha ultrapassada; para mostrar força política junto do seu sucessor, com quem até esteve a falar longamente, durante quase duas horas, nos dias anteriores a esta inesperada decisão.
Alterar a doutrina para agitar a ameaça
Vladimir Putin aproveitou o facto de já estar, desde setembro, a preparar a alteração da sua doutrina nuclear para anunciar uma nova versão, logo a seguir à decisão de Biden.
Com isso, virou a agulha da narrativa de um empoderamento da posição ucraniana para o receio geral de uma confrontação nuclear Rússia/NATO. A atualização da doutrina aponta para que um ataque com armamento convencional (mísseis, drones, outras aeronaves) apoiado por uma potência com armas nucleares pode justificar que Moscovo use armas nucleares. Prevê, também que qualquer agressão contra a Rússia por um país membro de uma coligação será considerado por Moscovo uma agressão de toda a coligação.
Ora, essa reformulação é desenhada a regra e esquadro para responder ao momento atual. E explora os receios de alguns países-NATO, sobretudo do flanco NATO ou da ponta norte, de um cenário de retaliação russa contra um país mais fraco e mais próximo de Moscovo à decisão dos EUA de levantar restrições de uso.
Há uma consequência imediata desta dramatização russa em relação ao que é, na verdade, uma posição legítima de quem apoia a Ucrânia a defender-se da agressão à sua soberania e integridade territorial: os países nórdicos, geograficamente muito próximos da Rússia, passaram a levar ainda mais a sério o risco de guerra dentro das suas fronteiras.
Nos últimos dias, milhões de suecos receberam um panfleto a aconselhar a população sobre como se preparar para uma guerra mundial, ou para outra situação de crise inesperada. Esses panfletos estão a ser distribuídos em cinco milhões de casas. Ao lado, na Finlândia, foi publicado um guia que vai ser entregue a dois milhões de pessoas com sugestões semelhantes. O mesmo se passa na Noruega, que difunde, via online, um conjunto de indicações à população sobre como se preparar para um cenário de crise.
A verdadeira ameaça russa
O medo apocalíptico do nuclear tem outra ilusão incluída, em jeito de perigosa armadilha, que é preciso desmontar: é que a Rússia representa mesmo uma ameaça ao espaço NATO, mas não no modo ataque nuclear - que seria, esse sim, catastrófico para os dois lados.
Putin, que não tem instintos suicidários, quer mesmo acabar com o projeto europeu. Porque receia que a Democracia chegue às suas fronteiras.
Há anos que o presidente da Rússia está a tentar minar a saúde democrática dos países europeus, tal como o tem feito também no Reino Unido (Brexit) e nos próprios EUA (Trump duas vezes eleito presidente).
O Kremlin está a promover uma guerra de agressão à Ucrânia desde 24 de fevereiro de 2022. Mas tem feito uma guerra híbrida a toda a Europa há muito mais tempo: pela desinformação, pela promoção e financiamento de candidatos que estejam contra a construção europeia. O que se passou recentemente na Moldávia e na Geórgia assim o comprova.
Nos próximos meses, o que se passar nas Eleições Legislativas na Alemanha será o primeiro teste sobre que capacidade Moscovo terá para influenciar escolhas internas fundamentais nos países da UE - neste caso, no principal deles. Uma provável vitória da CDU parece afastar os piores receios sobre uma eventual adesão de Berlim à “paz miserável” de Trump/Putin/Orbán - o possível futuro chanceler, Friedrich Merz, até já manifestou concordância com a autorização do uso de mísseis Taurus (alemães de longo alcance) em solo russo, num sinal de interpretação bem mais extensiva do que a de Scholz em relação à legitimidade ucraniana para o uso de armas ocidentais contra a Rússia.
A dupla derrota da Europa
No meio de algumas interrogações fundamentais (vai Trump abandonar por completo a Ucrânia ou manterá algum apoio americano relevante? Vão EUA e Rússia alinhar-se de forma assumida ou manterão um grau de desconfiança e rivalidade?), o cenário nos próximos meses tem tudo para nos revelar uma dupla derrota para a Europa: ao mesmo tempo que perde a confiança e o alinhamento com o seu maior aliado tradicional, os EUA, pela mudança política na Casa Branca, vê, a Leste, o urso russo a afiar as garras.
Há uma tempestade a criar-se sobre a Europa: com o regresso de Trump, a perspetiva de guerra comercial dos EUA contra os europeus é iminente; o recuo da prioridade de Washington quanto à segurança da Europa é muito provável. Os custos económicos e securitários, juntos, poderão levar a uma perda de escala europeia - algo já sinalizado no Relatório Draghi.
A Rússia de Putin acompanhará a vulnerabilidade europeia com especial atenção e interesse. Convém que deixemos de estar em negação.