A herança de Lenny Bruce
Foi há 50 anos que ocorreu, nos EUA, o lançamento de Lenny, de Bob Fosse, com Dustin Hoffman a interpretar Lenny Bruce (1925-1966), comediante de stand-up que se distinguiu pela contundência com que soube desmontar muitas formas de hipocrisia social e moral. Num tempo em que o mercado global do cinema era bem diferente, o filme só chegaria a Portugal a 18 de março de 1976, com estreia em Lisboa, no Cinema São Jorge (na altura ainda com uma sala única).
Lenny Bruce foi preso e condenado várias vezes depois de 4 de outubro de 1961, nessa data por ter utilizado uma palavra de calão no clube noturno Jazz Workshop, em São Francisco. Morreria aos 40 anos, a 3 de outubro de 1966, vítima de overdose, sem que fossem anuladas as acusações de “obscenidade” de que foi alvo - seria oficialmente perdoado a 23 de dezembro de 2003 (37 anos depois da sua morte) pelo então governador de Nova Iorque, o republicano George Pataki.
Meio século depois, o também republicano Donald Trump, presidente-eleito dos EUA, está citado em vários processos de tribunal, tendo sido já condenado num deles (o chamado Caso Stormy Daniels) por 34 crimes. Contra ele persistem acusações de apropriação de documentos secretos, manipulação eleitoral (no Estado de Geórgia, em 2020) e incitamento à violência (na invasão do Capitólio, a 6 de janeiro de 2021).
É uma tentação algo fácil, eventualmente equívoca, esta de colocarmos lado a lado a América de Lenny Bruce e a América de Donald Trump. Corremos o risco de atrair as generalizações mais ou menos “polémicas” que dominam o quotidiano televisivo, não poucas vezes alimentadas por vozes pueris da cena política - como se usar a palavra “América” fosse uma maneira automática de recobrir uma realidade estática, automaticamente transparente.
Fiquemo-nos pelo reconhecimento de um fenómeno de linguagem: aquilo que desencadeava a acção automática dos poderes democraticamente instituídos (a utilização pública de palavras obscenas) foi-se diluindo no nosso mundo de infinitos circuitos de “comunicação”. Perante a ousadia quotidiana de Trump, pode mesmo dizer-se que a multiplicação de obscenidades cognitivas (na cidade de Springfield, Ohio, haveria imigrantes haitianos a alimentarem-se de “cães e gatos”…) passou a existir como matriz de funcionamento daqueles mesmos circuitos - no limite, não interessa o que se diz, apenas conta a possibilidade de alimentar um fluxo de news (verdadeiras ou falsas) que se anulam na velocidade com que ecoam umas nas outras, gerando um autêntico sonambulismo informativo.
O filme Lenny é uma das obras-primas que Hollywood gerou ao longo da década de 1970. A conjuntura era riquíssima, como podemos verificar apenas recordando três outros títulos lançados em 1974: O Padrinho - Parte II (Francis Ford Coppola), Chinatown (Roman Polanski) e Uma Mulher Sob Influência (John Cassavetes). Ainda que não menosprezando os autores americanos que são legítimos herdeiros desse tempo (incluindo, ironicamente, o próprio Coppola…), vale a pena lembrar que, muito antes da proliferação gratuita de efeitos especiais que tem contribuído para (des)educar os espectadores mais jovens, Bob Fosse era um cineasta capaz de colocar em cena essa tragédia da linguagem de que somos sempre personagens, ora conscientes, ora incautos.
Ao contrário de algumas formas “modernas” de stand-up, em que se trata apenas de acumular anedotas grosseiras sem qualquer lógica ou sentido narrativo, Lenny Bruce deixou uma herança enraizada no valor primordial do que se diz - e, sobretudo, como se diz. A certa altura, naquela que é, provavelmente, a composição mais complexa de toda a sua carreira, Dustin Hoffman grita, desesperado: “Por favor, não me tirem as minhas palavras. São apenas palavras, não estou a fazer mal a ninguém.”