O título desta crónica seria certamente bastante interessante para poder ser adoptado por Agatha Christie para um dos seus irresistíveis policiais e, mesmo sem grande imaginação, já estamos a ver o belga Hercule Poirot a entrar na carruagem envolto nos nevoeiros do Sado.Para os mais cinéfilos este poderia ser um magnífico título para um western realizado por John Ford, “estrelado”, como diria Artur Semedo, por John Wayne.Acontece que por aqui não se escrevem romances policiais, nem se realizam filmes. Tentamos olhar para a realidade e compreendê-la.E essa realidade levou-nos a um destes dias acordarmos com a notícia de, em Portugal, no início do segundo quartel do Século XXI, um comboio rápido “perdeu” ou, mais propriamente, deixou para trás uma carruagem.Inquéritos, pareceres técnicos, peritagens e outros costumeiros documentos produzidos nestas circunstâncias virão seguramente a explicar, com detalhe e fundamentação técnica, o que terá acontecido.Acontece que aquela carruagem que ficou para trás tem uma dimensão simbólica inultrapassável.É um grito de alerta, para não dizer que é um lancinante grito de desespero.Somos hoje confrontados com múltiplas carruagens que ficaram, ou vão ficando, para trás.Serviços públicos que, ou não atendem os cidadãos, ou estão desqualificados e atendem mal, ou nos atiram para filas intermináveis.Parcelas significativas do nosso território que consciente, ou inconscientemente, abandonamos à sua sorte e onde já nem as funções de soberania são adequadamente exercidas.Desigualdades sociais e de rendimentos que se vão acentuando porque nada de estrutural é feito para dar maior coesão à sociedade.O (não) investimento público continua a ser o instrumento privilegiado para evitar os deficits orçamentais, salvando a conjuntura e sacrificando o estrutural, com os impactos que a carruagem perdida simboliza.Esta sensação de abandono, de falta de cuidado, de cada um entregue à sua sorte e, pior, de que ninguém é responsável, não faz bem ao regime democrático.Cuidar, explicar e assumir responsabilidades é essencial para a vida democrática e a vida democrática não é nem um filme, nem um romance policial. Advogado e gestor