Quando Henrique Gouveia e Melo disse que “não me vou limitar, nem para o lado direito, nem para o lado esquerdo”, durante uma entrevista à RTP, no início de setembro, estava a responder à pergunta do jornalista Vítor Gonçalves acerca da possibilidade de ser reconduzido para um segundo mandato enquanto chefe do Estado-Maior da Armada. Mas as palavras ganham outro sentido perante a muito provável candidatura à Presidência da República de quem as proferiu, ouvidas a menos de um mês de 27 de dezembro, dia em que se completam três anos do objetivo militar de transformar a Marinha, assumido pelo almirante que os portugueses associam à vitória sobre a pandemia..Sendo já oficial que o próprio afastou a possibilidade de continuar mais três anos, abrindo caminho a uma candidatura presidencial, decifrar as posições e ideias do cidadão de 64 anos que poderá suceder a Marcelo Rebelo de Sousa é um desafio dificultado pela “limitação estatutária” com que Gouveia e Melo se habituou a enfrentar qualquer pergunta nesse sentido. Quarenta e cinco anos de carreira militar impedem pronunciamentos políticos de quem adverte que a sua liberdade “não será cerceada” no regresso à vida civil, mas em entrevistas, discursos e artigos de opinião encontram-se fragmentos daquilo que defende..Numas eleições presidenciais em que tanto o PSD como o PS vão apoiar candidatos - a moção com que Luís Montenegro foi reeleito líder dos sociais-democratas estipula que deve tratar-se de um militante do partido -, o homem que passou parte da vida ao comando de submarinos tem potencial para se aproximar do eleitorado dos dois maiores partidos. Há três anos, disse ao Expresso que pertence ao “centro pragmático”, com “umas coisas mais à esquerda e umas coisas mais à direita”. Já neste ano, em maio, numa entrevista ao DN e à TSF, realçou que “o equilíbrio está ao centro”. Perante o perigo de “forças políticas que advogam soluções muito simplificadas e que podem ser muito atraentes em termos mediáticos, mas podem ser perigosas em termos de execução”, disse que “o centro deve ser forte e encontrar soluções dentro do que é a democracia”..A crítica implícita ao populismo torna menos compreensível a hipótese de o Chega apoiar a candidatura do antigo coordenador da taskforce para a vacinação contra a covid-19, manifestada por André Ventura, ao reconhecer que Gouveia e Melo e Passos Coelho são bons nomes para Belém. No entanto, na entrevista ao DN e à TSF, fez uma ressalva passível de aumentar a sua abrangência: “Neste momento, também não vejo partidos que queiram subverter a democracia no sistema político português.”.Criar e distribuir riqueza.Sem reticências, Gouveia e Melo identifica a produtividade da economia como “o maior desafio que temos neste momento”. Há três meses, na entrevista à RTP, admitiu que “todos os partidos estão cientes de uma preocupação recorrente e que perpassa todo o espetro político”. Mas realçou as divergências quanto à melhor forma de lidar com o problema, sem se comprometer. “Não há distribuição sem criação de riqueza”, referiu, vincando a necessidade de que “essa riqueza não se concentre de tal forma que a sociedade seja de tal forma desigual que depois temos um problema como eu vi no Brasil”..O almirante passou o fim da adolescência em São Paulo, entre 1976 e 1979, guardando recordações de “uma sociedade muito desigual, em que uma percentagem muito pequena de gente muito rica vivia enclausurada, com medo de grande parte da população, que tinha um nível de vida muito baixo”. A ida para o Brasil, voltando a Portugal aos 18 anos, para ingressar na Escola Naval, e o nascimento em Quelimane, em Moçambique, onde o tio era encarregado do Governo na então província ultramarina - transmitiu o poder ao governador-geral Baltazar Rebelo de Sousa, pai do Presidente da República -, foram encaradas como indícios de pertença à direita, mesmo quando Gouveia e Melo era “apenas” coordenador da taskforce. Mas nunca tal inclinação foi confirmada por Gouveia e Melo, que marcou distâncias em relação ao saudosismo colonialista. “Vivo bem com o processo histórico. Nós estávamos no sítio errado e no contexto errado. Sou dos últimos do Império, mas os impérios acabam”, disse, numa entrevista ao Nascer do Sol..Em setembro de 2021, quando afirmava que “daria um péssimo político” e que “devemos separar o que é militar do que é político”, pois “são campos de atuação e maneiras de estar diferentes”, evitava conjugações desses mundos. “Não devemos misturar. Se no passado houve necessidade dessas misturas, isso é o passado.” Já neste ano, disse à RTP que a eleição de um ex-militar para Belém era algo que não via “nem como retrocesso nem como um avanço”. E salientou que Ramalho Eanes foi “um Presidente que enfrentou problemas extraordinários” e garantiu “uma sociedade perfeitamente democrática” em Portugal. “Foi um indivíduo extraordinário, que fez uma transição pós-fim da ditadura, num período conturbado, em que estivemos quase a entrar numa outra ditadura”, acrescentou, aproximando-se da leitura que à direita se faz dos acontecimentos que culminaram no 25 de novembro de 1975..Distante de extremismos, que considera consequência direta das desigualdades, Gouveia e Melo defendeu, na entrevista à RTP, que tais desequilíbrios “não têm sido acentuados” em Portugal. E que a atividade económica “deve beneficiar aqueles que são os criadores dessa riqueza”, como tem procurado fazer na Marinha, que vê como “catalisador de tecnologias” e “acelerador de processos” que juntam empresas e universidades. Disse à anterior ministra da Defesa, Helena Carreiras, que as empresas tecnológicas do setor teriam mil milhões de euros de faturação no espaço de cinco anos, orgulhando-se de, dois anos mais tarde, assegurarem 300 milhões. Nos casos de sucesso, destaca-se a Tekever, cujos drones são utilizados na Ucrânia..Ainda sobre o tema, Gouveia e Melo julga que Portugal “perdeu o comboio da prosperidade” há século e meio, aquando da Revolução Industrial, apesar de a adesão à Comunidade Económica Europeia ter dado início a um desenvolvimento que “não está acabado”. E, numa ligação direta ao seu trabalho na Marinha, diz que “podemos estar na primeira vaga da exploração do mar”..Sem mostrar medo a Putin.Num contexto em que a inovação “ajuda a equilibrar a disparidade de poder, como fica demonstrado pela defesa da Ucrânia em relação à Rússia”, Gouveia e Melo reiterou, no Dia da Polícia Marítima, em outubro de 2023, que “importa relembrar que no confronto bipolar entre Democracias e Autocracias que se desenha no horizonte, o mar será uma via de pressão política e militar”..Embora não seja popular admitir a intervenção direta no conflito com a Rússia, vem deixando alertas. “Se a Europa for atacada e a NATO nos exigir, vamos morrer onde tivermos de morrer para a defender”, garantiu ao DN. Mais recentemente, reagindo a indicações da Suécia, Noruega e Finlândia para as populações se prepararem para a guerra, disse que “não se deve exagerar, criando preocupações exageradas, mas também não se pode minimizar, ao ponto de isso não ser sequer uma preocupação”. E tem uma visão clara de como se deve lidar com Vladimir Putin, defendendo que mostrar medo é a pior opção. “Se for, mais vale baixarmos os braços e entregarmos desde já a vitória ao opositor, que usa isso de forma psicológica contra nós.”.Na entrevista à RTP, afastou uma solução militar para o maior conflito na Europa “desde a Segunda Guerra Mundial”. “Ninguém vai esmagar a Rússia, e julgo que a Rússia não irá esmagar a Ucrânia”, disse, afastando a cedência de território. “No dia em que a potência beligerante tiver resultados positivos da invasão, quando estiver mais preparada poderá cair na tentação de fazer outras ações e, de forma progressiva, avançar nos seus intentos, que são quase imperialistas.” Na sua opinião, está em curso um conflito mundial por uma nova ordem internacional e “quem não compreender isto é porque não está suficientemente atento à realidade”..Num mandato dedicado a evitar que a falta de recursos da Marinha atire Portugal “para a irrelevância geopolítica, geoeconómica e geoestratégica”, preconizou o desenvolvimento da “Macaronésia da Língua Portuguesa”, abrangendo os arquipélagos dos Açores, da Madeira, de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe e de Fernando de Noronha (Brasil). Ligando a Europa, a América e a África, com “grande potencial económico” pelos recursos naturais, e sendo uma “região estratégica para as comunicações”, dada a importância destas ilhas para os cabos submarinos..Favorável à imigração.Mais raras são as suas palavras sobre as outras áreas de governação. Quanto à saúde, disse em outubro de 2021, no almoço-debate: “O Processo de Vacinação contra o Covid-19 em Portugal”, que encontrou um Serviço Nacional de Saúde (SNS) “muito partido e desestruturado”. Rotulou-o de tão “regionalizado” que levou a taskforce a criar “um sistema nervoso central”. Dois meses depois, no 157.º aniversário do Diário de Notícias, recordou as suas impressões enquanto coordenador da vacinação. Mais uma vez disse, meses antes de o Governo criar a direção executiva do SNS, que encontrou “um sistema um bocado pulverizado e que, por estar disperso, precisa de uma articulação mais forte”..No que toca a preocupações ambientais, que lhe podem granjear apoios noutras áreas políticas, apontou ao DN as alterações climáticas enquanto grave ameaça: “Não quero ser apocalíptico, mas quando penso nos meus filhos e nos meus netos não posso deixar de estar preocupado.”.Quanto à imigração, considerada “descontrolada” pelo Chega, enquanto a AD prefere “portas abertas, mas não escancaradas”, o almirante opta pela abertura. “A nossa população está a envelhecer. Precisamos de pessoas que imigrem para o nosso território”, disse ao Correio da Manhã, em abril. Mas o descendente de italianos pelo lado materno, patente no apelido Passaláqua, separa motivações económicas e humanitárias: “Precisamos de uma política de atratividade para aqueles que desejamos para desenvolver a economia e uma política humanitária para receber aqueles que estão em muitas dificuldades no resto do mundo.”.Outros fragmentos do pensamento do homem que coordenou a vacinação, passou a vida em submarinos e modernizou a Marinha são mais dispersos. Sobre a corrupção, negou que esteja disseminada nos partidos, “essenciais para a democracia”, enquanto a crítica à justiça ficou clara ao considerar “inconcebível” que alguém “tenha tanta capacidade de se defender que possa andar dez anos sem pagar por um crime”. Mas há muito tempo para Portugal conhecer melhor aquele que há três anos esperava “não se deixar cair na tentação da política”. E que pedia, entre risos, “se isso acontecer, deem-me uma corda para me enforcar”..Coragem, visão e foco são marcas do “nada suave”.Entre muitas diferenças, há algo em comum entre Henrique Gouveia e Melo e Marcelo Rebelo de Sousa. “Mal dorme”, explica ao DN um dos colaboradores mais próximos, habituado a que o almirante responda a mensagens às três da manhã..Mas o que sobressai, quando se pergunta o estilo de liderança do ainda chefe do Estado-Maior da Armada, vai além da escassez de sono e da ampla capacidade de trabalho, reconhecida tanto enquanto submarinista como na coordenação da taskforce para a vacinação contra a covid-19 ou na liderança da Marinha. Quem com ele trabalha destaca que Gouveia e Melo identifica primeiro “coisas que mais ninguém está a ver”, o que tanto se aplica a delinear o modelo dos centros de vacinação, testado na Academia Militar antes do envio de uma carta a todos os autarcas para uniformizarem procedimentos, como à antecipação da importância que os drones teriam em operações de guerra e patrulhamento. Chama-lhes “marinheiros de silício”, contrapondo-os a “marinheiros de carbono”, que acredita existirem em número insuficiente”. Mas igualmente fulcral é o “foco fora do normal” de quem “pode estar com 30 mil coisas ao mesmo tempo”..Não menos essencial é a coragem. Aquela que demonstrou, durante a pandemia, ao enfrentar um grupo de negacionistas que o aguardavam nas escadarias do centro de vacinação em Odivelas. Alertado quando ia a caminho, nem quis ouvir a sugestão de entrar por uma porta lateral. “Eu já os estou a ver”, disse, avançando sem hesitações. Ou quando, já à frente da Armada, foi tão implacável com os dois fuzileiros que mataram um agente da PSP como com a tripulação do NRP Mondego, que recusou acompanhar um navio de guerra russo, alegando más condições da sua embarcação. Por outro lado, o incremento do combate aos narcotraficantes nas águas nacionais valeu-lhe ameaças que também não o impressionaram..Visto como “um comunicador nato”, que usa uma “linguagem transversal a toda a sociedade”, Gouveia e Melo destaca-se por “ter as ideias muito bem estruturadas na cabeça”. Quem se habituou a liderar pelo exemplo e “não exige nada aos outros que não faça também”, tem fama de ser ambicioso, que não é negada pelos colaboradores. “Sem dúvida, mas no bom sentido”, diz quem se lembra de lhe ouvir o objetivo, na vacinação, de “fazer o melhor trabalho a nível mundial, se possível”..Com D. João II e Afonso de Albuquerque como referências históricas, Gouveia e Melo também sabe ser duro. Algo que encara com uma pitada de humor. Há meses, num jantar da Associação dos Cursos de Auditores de Defesa Nacional, mencionou que, “se calhar, os chefes militares eram mais do tipo Português Suave, mas eu sou de um género nada suave”..O que pensa Gouveia e Melo?.EconomiaOs discursos e os atos à frente da Marinha, criando oportunidades para empresas, são a manifestação da defesa da criação de riqueza. “Primeiro é preciso produzir para depois distribuir”, defende..Estado socialApesar disso, Gouveia e Melo diz que o direito de todos “a uma vida boa, à saúde e à educação” deve ser “garantido e regulado pelo Estado”. E não esquece desigualdades que observou no Brasil..MarAlém da importância estratégica da posição privilegiada no Oceano Atlântico, destaca o potencial económico da exploração dos recursos do mar. Mas adverte: “Há que não perder o comboio.”.LusofoniaTer a sua vida dividida entre Moçambique, Brasil e Portugal, bem como a cooperação militar da CPLP, ajudam a que Gouveia e Melo seja um comprometido com todas as facetas do espaço lusófono..ImigraçãoA necessidade de repor uma população muito envelhecida faz com que mostre abertura à entrada de imigrantes. Mas realça que deve haver distinção entre razões económicas e humanitárias. .JustiçaJá deixou bem claro que considera que o sistema português prevê um excesso de garantias, levando a que existam casos em que “possa andar dez anos sem pagar por um crime”..DefesaReforçar a capacidade de resposta a ameaças é uma prioridade que o levou a admitir algo semelhante ao serviço militar obrigatório. No que toca à Ucrânia é muito claro quanto às obrigações de Portugal..InovaçãoA aposta na aplicação das novas tecnologias é outra preocupação constante do militar. “A inovação é crucial, pois ajuda a equilibrar a disparidade de poder”, defendeu numa conferência da NATO..SaúdeA intervenção decisiva na vacinação contra a covid-19 exigiu que alterasse processos. Mais tarde, refletindo sobre a experiência, disse que o Serviço Nacional de Saúde carecia de articulação..InformaçãoNa coordenação da taskforce travou lutas recorrentes com os negacionistas. A esse propósito, defendeu que “a desinformação é sempre má”, pois leva a criar “bolhas de obscurantismo”.