Pequim é agora rival dos europeus
O sinal foi dado no dia 12 de março, quando a Comissão Europeia e a chefe da diplomacia europeia Federica Mogherini publicaram uma nova "perspetiva estratégica" sobre o tema no contexto do "crescente poder económico e influência política da China". O documento retrata o gigante asiático nos seguintes termos: "A China é simultaneamente um parceiro de cooperação com o qual a UE tem objetivos estreitamente alinhados, um parceiro de negociação com o qual a UE deve encontrar um equilíbrio de interesses, um concorrente económico na corrida da liderança tecnológica e um rival sistémico que promove modelos alternativos de governação."
Para o eurodeputado Jo Leinen, a China de Xi Jinping demonstra uma obsessão de "total controlo", o que levou a Europa a acordar e a tomar medidas. "Em poucos anos transformou-se de país amigo em concorrente hostil", comentou o social-democrata alemão à Bloomberg. "A China perdeu a batalha com os Estados Unidos e está a caminho de perder a batalha com a Europa", prevê.
Esta mudança levou a que a oriente houve quem falasse em "revolução", segundo a Foreign Policy, entre os dois gigantes que todos os dias têm trocas comerciais avaliadas em mais de mil milhões de euros. A UE é o segundo maior parceiro comercial da China e Pequim é o maior parceiro dos europeus.
A nova estratégia europeia assenta em dez ações com os objetivos de "procurar vigorosamente condições mais equilibradas e recíprocas que regulem as relações económicas" e "domínios em que a própria UE deve adaptar-se à evolução das realidades económicas e reforçar as suas próprias políticas internas e a sua base industrial". Dez dias depois, foi a vez do presidente do Conselho Europeu Donald Tusk se pronunciar: "O nosso objetivo é alcançar uma relação equilibrada, que garanta uma concorrência leal e a igualdade de acesso ao mercado. Neste contexto, esperamos persuadir a China a incluir os subsídios à indústria como um elemento crucial da reforma da Organização Mundial do Comércio (OMC)."
A UE não aceita que a China continue a ser tratada como um "país em vias de desenvolvimento" na OMC, beneficiando de tratamento especial, e seja ao mesmo tempo um gigante em vias de se tornar a maior economia do mundo. "Precisamos de regras justas e, naturalmente, também de proteção da propriedade intelectual e do know-how da Europa e de um tratamento adequado dos nossos investidores na China", afirmou o chanceler austríaco Sebastian Kurz no final do último Conselho Europeu.
Como efeito colateral da saída do Reino Unido da UE, nessa reunião dos líderes europeus estava na agenda discutir a relação sino-europeia, mas o debate sobre o Brexit tomou conta do tempo e só no segundo dia é que se realizou.
Na ordem de trabalhos (e de intenções) da 21.ª cimeira UE-China, na terça-feira, em Bruxelas, está o reforço da cooperação bilateral, mas tendo em conta a "nova visão estratégica" europeia.
A cibersegurança e a segurança das futuras redes 5G é uma das grandes preocupações dos europeus. Apesar de não se ter seguido o exemplo da Austrália e da Nova Zelândia, que baniram a chinesa Huawei Technologies nas redes de comunicações, a advertência dos Estados Unidos de que os equipamentos das futuras redes 5G de alta velocidade podem ser usados para espiar o Ocidente deixou Bruxelas em alerta.
Em complemento, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução, em Estrasburgo, a pedir à Comissão Europeia para tomar medidas de segurança. Aprovada com 586 votos a favor e apenas 14 contra, os deputados manifestaram "profunda preocupação com as recentes alegações de que o equipamento 5G desenvolvido por empresas chinesas poderá ter integradas backdoors [formas de acesso não autorizadas] que permitiriam aos fabricantes e às autoridades ter acesso não autorizado a dados privados e pessoais e a telecomunicações da UE".
Em conformidade, na semana passada, a Comissão recomendou aos Estados membros medidas que permitam excluir empresas no domínio 5G "por razões de segurança nacional". Pediu ainda a cada país para analisar os riscos inerentes aos fornecedores e operadores, "incluindo os provenientes de países terceiros". Em outubro, a UE irá fazer uma avaliação conjunta dos riscos de forma a adotar uma "abordagem comum".
Em entrevista à Lusa, o vice-presidente da Comissão Europeia com o pelouro do Mercado Único Digital, Andrus Ansip, admitiu que Bruxelas "está preocupada com as empresas chinesas". O dirigente estónio concluiu: "Gostaríamos de cooperar com aqueles que respeitem as leis nacionais e não estamos prontos para colaborar com aqueles que estão dispostos a violar as suas próprias regras."
Os direitos humanos e em especial da minoria muçulmana uigure são outra pedra debaixo do sapato. Segundo o Comité das Nações Unidas para a eliminação de discriminação racial e ong como a Human Rights Watch, crê-se que haja um milhão de uigures mantidos em campos de detenção, uma alegação que Pequim desmente.
Além dos temas espinhosos, ambas as partes debaterão a forma de enfrentar os desafios comuns e como aplicar o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas. As questões relativas à segurança externa e aos direitos humanos também estarão na ordem do dia, em particular a situação na Península da Coreia, no Afeganistão, na Venezuela e o acordo nuclear com o Irão.
A nova abordagem europeia em relação à China pode trazer um momento nada diplomático. Por convenção são emitidas declarações conjuntas na conclusão de cimeiras bilaterais, mas o esboço elaborado por Bruxelas foi tão alterado por Pequim que é provável não existir comunicado algum após o primeiro-ministro chinês Li Keqiang, o presidente da Comissão Europeia e o presidente do Conselho Europeu se terem encontrado.
"Queríamos ser claros sobre como queremos trabalhar com a China, e não emitir um documento sem significado", disse um diplomata à Reuters. O texto vinculava Pequim a concluir as conversações sobre um acordo de investimento e a comprometer-se a eliminar barreiras ao comércio, bem como assegurar o empenho na cibersegurança e em melhorar as liberdades religiosas da minoria uigure
"É uma confusão, por isso enfrentamos a perspetiva de não haver declaração", disse um outro diplomata da UE, embora as negociações devam continuar até à cimeira.
A mudança de tom de Bruxelas não está em dessintonia com alguns dos principais líderes europeus, que já não escondem a frustração pela falta de abertura do mercado chinês em oposição à entrada na Europa de empresas estatais ou subsidiadas pelo Estado chinês.
"O período de ingenuidade europeia acabou", disse o presidente francês Emmanuel Macron. "A relação entre a UE e a China não deve ser, acima de tudo, uma relação comercial, mas sim uma relação geopolítica e estratégica", afirmou. Mais comedida na escolha das palavras, a chanceler alemã Angela Merkel diz que a Europa deve considerar a China tanto um concorrente como um parceiro.
Macron recebeu o homólogo chinês Xi Jinping duas semanas antes da cimeira, acompanhado por Merkel e pelo presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker, em sinal de unidade. Dias antes reconhecera uma divergência de pontos de vista na UE e afirmou que deixar empresas chinesas comprar infraestruturas da UE, como os portos, tinha sido um "erro estratégico".
"Um país não pode condenar a política chinesa em matéria de direitos humanos porque os investidores chineses estão envolvidos num dos seus portos. Não pode ser assim", disse por sua vez Jean-Claude Juncker.
Se a Grécia é o único país que vendeu um porto (o de Pireu) a uma empresa chinesa, uma dúzia de outros na Europa contam com chineses na estrutura acionista de portos ou a investir em novos terminais. É o caso de Itália, cujo porto de Trieste poderá voltar a desempenhar um papel importante como já teve no passado.
As relações entre Roma e Pequim podem ser mais um ponto de desacordo entre Macron e o governo eurocético e populista italiano e mais uma dificuldade para chegar a consenso entre os 27. Causou mal-estar nalgumas capitais europeias a recente visita de Xi Jinping a Itália, que coincidiu com a assinatura de acordos bilaterais incluídos no maior plano de infraestruturas do mundo, Uma Faixa, Uma Rota da China. Isto apesar de uma dúzia de outros Estados membros - Portugal incluído - terem assinado com Pequim semelhante associação.
Mas Itália pertence ao exclusivo clube G7, um dos países mais industrializados do mundo. Berlim, Paris e outras capitais do norte da Europa desconfiam dos acordos. Além de todas as razões de queixa a apresentar na cimeira, temem que o plano seja uma "armadilha de dívida".
Em resultado de tudo isto, além da abordagem comum ao controlo dos investimentos estrangeiros, em especial os que afetam infraestruturas ou tecnologias vitais, a Comissão quer limitar o acesso aos concursos públicos da UE às empresas de países cujos mercados de contratos públicos não são abertos.