Mundo
10 setembro 2018 às 14h12

China acusada de prender muçulmanos em campos de reeducação política

Organizações de defesa dos direitos humanos referem mais de um milhão de muçulmanos de língua turca detidos em campos de "educação política". ONU denunciou "alegações profundamente perturbadoras de detenções arbitrárias em larga escala" na região autónoma do Xinjiang

Paula Freitas Ferreira

Um novo relatório da Human Rights Watch aponta para uma "campanha maciça e sistemática de violações dos direitos humanos contra muçulmanos de língua turca no Xinjiang", com níveis de repressão contra minorias étnicas e religiosas que não se conheciam desde a Revolução Cultural, nas décadas de 50 e 60. A China refuta as acusações e defende que a educação política que está a levar a cabo serve apenas um propósito: combater o extremismo islâmico. Mas a denúncia já levou a que Michelle Bachelet, a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, pedisse esta segunda-feira à China que autorizasse a entrada de observadores da ONU nos "chamados campos de reeducação".

O pedido fez parte do discurso inaugural da ex-presidente chilena no Conselho de Direitos Humanos da ONU, onde denunciou as "alegações profundamente perturbadoras de detenções arbitrárias em larga escala de uigures e outras comunidades muçulmanas, nos chamados campos de reeducação no Xinjiang", o pedido foi para que os observadores possam entrar em todo o território chinês.

Bachelet prometeu ser uma voz para as vítimas. "Fui presa política e filha de presos políticos. Sou refugiada e médica - inclusive de crianças que sofreram tortura e desaparecimento forçado", disse no seu discurso dirigido aos 47 membros do conselho. Segundo a Reuters, não houve comentários imediatos da delegação chinesa.

Não é a primeira vez que o governo chinês é acusado de exercer políticas repressivas contra os uigures - os povos muçulmanos de língua turca que vivem na região autónoma de Xinjiang, no noroeste da China. A repressão aumentou drasticamente a partir de 2016, quando o secretário do Partido Comunista, Chen Quanguo, foi transferido da Região Autónoma do Tibete para assumir a liderança do Xinjiang.

O terror do separatismo

A repressão contra os uigures intensificou-se em 2016, mas pode dizer-se que iniciou um caminho mais duro a partir de maio de 2014, quando o país lançou a campanha de Combate ao Terrorismo Violento no Xinjiang. Desde então, o número de pessoas formalmente presas aumentou três vezes, segundo dados oficiais e estimativas da organização não-governamental Chinese Human Rights Defenders. Ao contrário dos hui, um grupo étnico chinês em tudo semelhante à etnia hancom a exceção da prática do Islão, os uigures são olhados com desconfiança por Pequim, principalmente por se concentrarem no Xinjiang. Tal como no Tibete, Pequim sempre temeu que ali nascesse um foco organizado de separatismo ou, neste caso específico, um foco islâmico.

Após os atentados de 11 de setembro de 2001 e as consequentes invasões do Afeganistão (logo em outubro desse ano) e do Iraque (em março de 2003) pelos EUA, e da explosão do extremismo islâmico violento, a China intensificou as operações de segurança no Xinjiang para evitar que os terroristas penetrassem na sua fronteira ocidental. Segundo a CNN, é verdade que ocorreram ataques no Xinjiang que se provou estarem ligados a grupos terroristas islâmicos, mas a maioria dos analistas políticos considera a ameaça limitada. A comunidade internacional, e, claro, Pequim, sabem que existem combatentes uigures na Síria que estão do lado do Estado Islâmico ou que fazem parte de outros grupos terroristas que combatem o governo de Bashar al-Assad.

O relatório de 117 páginas da Human Rights Watch (HRW) e intitulado "Erradicação de vírus ideológicos": a campanha de repressão chinesa contra os muçulmanos de Xinjiang", apresenta provas de detenção arbitrária, tortura e maus tratos em massa levados a cabo pelo Governo chinês, além dos controlos cada vez mais generalizados na vida quotidiana desta minoria étnica. Os 13 milhões de muçulmanos de língua turca têm sido submetidos "a doutrinação política forçada e a uma punição coletiva", além de sofrerem "restrições de movimentos e comunicações", acusa a organização, que aponta ainda o aumento de restrições religiosas e de operações de vigilância, comportamentos que violam a lei internacional de Direitos Humanos. No mês passado, a ONU já tinha alertado para os vários "relatos de detenção de um grande número de uigures e de outras minorias muçulmanas, mantidos incomunicáveis por longos períodos, sem acusação ou julgamento, sob o pretexto de combater o extremismo religioso".

A China ainda não se pronunciou sobre o relatório da HRW, mas Hua Chunying, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, considerou as acusações da ONU falsas, alegando que as "informações [são] infundadas e irresponsáveis".

Segundo a CNN, que apelida o comportamento do Governo chinês de "paranoico", a posição do país em relação ao extremismo islâmico tem atingido muçulmanos comuns que deixaram de poder cumprir o Ramadão, usar barbas longas no caso dos homens e véus no caso das mulheres ou educar os filhos em casa. Muitos foram obrigados a entregar os passaportes. Desde 2014, as autoridades também têm realizado visitas regulares a famílias muçulmanas, uma política que se expandiu drasticamente este ano, quando mais de um milhão de oficiais foram enviados para morar com famílias muçulmanas, um programa que consiste em proporcionar "educação política" no domicílio destas minorias.

O relatório da HRW partiu de entrevistas a 58 ex-residentes do Xinjiang, incluindo cinco ex-detidos e 38 familiares de detidos. Dos entrevistados, 19 deixaram o Xinjiang desde janeiro de 2017.

A atenção dos media no Xinjiang tem focado os campos de educação política, onde se estima que estejam detidos cerca de um milhão de muçulmanos turcos, onde são submetidos ao "programa de educação política" por períodos nunca inferiores a um ano. Há relatos de mortes nestes campos, onde os detidos sofrem abusos físicos e psicológicos, vivem em condições precárias, em cadeias sobrelotadas e sem uma data para a liberdade. Os presos são mantidos em cativeiro mesmo quando padecem de doenças graves ou quando são muito idosos. Entre os que Pequim mantém presos, estão adolescentes, mulheres grávidas e lactantes e pessoas com deficiências. Ex-prisioneiros relataram tentativas de suicídio e severas punições por desobediência nas instalações.

Nos campos de detenção, os prisioneiros são doutrinados contra as "três forças do mal" - "separatismo, terrorismo e extremismo" - de acordo com relatos de ex-prisioneiros citados no relatório. São obrigados a aprender novas regras, como evitar saudações islâmicas, usar caracteres chineses em vez da língua turca e cessar comunicações com familiares em 26 países predominantemente muçulmanos. São ainda coagidos a evitar discutir religião e política online.

"Se resistirem, ou os oficiais acharem que falharam nas aulas, são punidos. Podem ser submetidos a confinamento solitário, a não ser permitido comer por um certo período ou obrigados a permanecer acordados por períodos de 24 horas, entre outras punições", revelou uma da investigadoras da HRW, Maya Wang.

Repressão ultrapassa fronteiras e está a separar famílias

"A repressão também tem impacto fora da China. Muitos uigures e cazaques vivem no exterior, e a repressão está a destruír famílias. Alguns membros estão presos no Xinjiang e não podem sair porque as autoridades confiscaram os passaportes, ou foram detidos e a outra parte da família está fora da China", explica Wang.

Segundo o relatório da HRW, as autoridades chinesas negam os abusos e descrevem os acampamentos como "centros de formação profissional e de emprego" para "criminosos envolvidos em infrações menores". No entanto, a China não permite o monitorização independente das instalações pela ONU, por organizações de direitos humanos e não são permitidas visitas de jornalistas.

Sabe-se que nos últimos anos, Pequim tem transferido importantes recursos financeiros, humanos e técnicos para o controlo social no Xinjiang. As autoridades contrataram milhares de seguranças e construíram várias esquadras da polícia e postos de controlo na região. Vigiam as redes familiares e sociais dos habitantes e usam essas informações como indicadores de seu nível de confiabilidade política.

Para as organizações de direitos humanos, a mais inovadora - e perturbadora - das medidas repressivas em Xinjiang é o uso governamental de sistemas de vigilância em massa que usa a alta tecnologia. As autoridades de Xinjiang recolhem os dados biométricos dos moradores da região, como amostras de voz e ADN, usam inteligência artificial e big data para identificar e rastrear todos os que vivem em Xinjiang.

Depois do relatório da ONU no mês passado, um grupo bipartidário de legisladores dos EUA pediu que as autoridades chinesas envolvidas em supostas violações de direitos humanos em Xinjiang sejam sancionadas pelo Ato Magnitsky Global - a lei de 2012 projetada para congelar os ativos de certos governos russos. "A detenção de um milhão ou mais de uigures e outras minorias étnicas predominantemente muçulmanas em centros ou campos de 'reeducação política' exige uma resposta dura, direcionada e global", escreveu o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo.

Em resposta à carta, Pequim disse que "os EUA não estão realmente em posição de julgar a China nesta questão". "A China está empenhada em garantir a liberdade religiosa dos cidadãos chineses", acrescentava a resposta.