'Diário de uma cidadã fechada'. Escritora chinesa critica Pequim e torna-se estrela na Internet

Popular escritora chinesa Fang Fang denuncia erros do governo chinês ao lidar com a epidemia em Wuhan e torna-se uma estrela da internet com o seu "Diário de uma cidade fechada".
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"O governo é o governo do povo, existe para servir o povo", escreveu nas redes sociais Wang Fang, escritora chinesa de 64 anos, mais conhecida pelo seu pseudónimo, Fang Fang, numa reação ao pedido de um alto funcionário da cidade de Wuhan, devastada pelo coronavírus, para que os moradores mostrassem gratidão ao Partido Comunista por conter o contágio. "Por favor, não seja arrogante e humildemente mostre gratidão aos seus mestres - aos milhões de pessoas Wuhan."

A publicação de 7 de março era uma das entradas no "Diário de uma cidade fechada", de Wang, um relato sombrio da vida em quarentena em Wuhan, que teve milhões de visualizações e recebeu vários elogios dos leitores devido à sua autenticidade - e por não se juntar ao coro do triunfalismo dos meios estatais sobre a batalha do Partido Comunista contra o vírus. Durante a crise, o diário de Wang tornou-se um espaço de debate que se desviava da narrativa oficial do presidente Xi Jinping. Por exemplo, os erros iniciais do governo ao lidar com o surto eram um tema regular para Wang, que repetidamente condenou as autoridades locais por levar os moradores a pensar que a doença não era muito contagiosa e poderia ser controlada - uma resposta que ela acredita ter custado inúmeras vidas.

Perseguida pela censura, com várias entradas repetidamente apagadas, a autora viu a sua conta no Weibo, com mais de 3,8 milhões de seguidores, bloqueada por duas semanas na mesma noite em que o Dr. Li Wenliang morreu após ser infetado pelo coronavírus, a 7 de fevereiro. Então, a Caixin, uma respeitada revista de negócios chinesa, e o Jinri Toutiao, um aplicativo de agregação de notícias, ajudaram Wang a contornar a censura publicando o seu diário nas suas plataformas, onde as publicações frequentemente recebiam dezenas de milhares a centenas de milhares de visualizações.

Aparentemente, apesar de tudo, as autoridades terão permitido que o diário de Wang permanecesse online como um "escape para as emoções públicas" e também uma forma de ir monitorizando a opinião pública, disse ao Wall Street Journal Wu Qiang, investigador de política chinesa e ex-professor da Universidade Tsinghua, em Pequim. Nas anotações do diário e nos comentários no Weibo, ela descreveu os seus críticos mais veementes como fanáticos ideológicos que fazem tudo para acabar com o pensamento independente. "Pessoas como nós estão num campo de batalha, e Fang Fang é o nosso combatente mais destacado", disse Tang Yiming, professor em Wuhan, numa entrevista recente.

Outros críticos, no entanto, parecem ter sido silenciados pelo governo. Em fevereiro, pelo menos duas pessoas desapareceram depois de documentar as condições em Wuhan com vídeos online. Um proeminente professor da Universidade de Tsinghua, Xu Zhangrun, também se remeteu ao silêncio depois de escrever um ensaio crítico sobre o modo como o presidente Xi tratou a questão do coronavírus. Um magnata reformado e membro do Partido Comunista, Ren Zhiqiang, também está incontactável desde meados de março depois de atacar a liderança de Xi num ensaio que publicou online.

"Eu não fiz nada de errado", disse Fang Fang no início de março ao TheIndependent. "Tudo o que fiz foi [...] registar o que está a acontecer ao meu redor e os meus próprios sentimentos depois de ler tantas histórias miseráveis. Se eu não posso fazer isso, a nossa sociedade tem um grande problema."

A escritora publicou sua 60.ª entrada do diário, que anunciou ser a última, pouco depois da meia-noite de 25 de março, horas depois de as autoridades informarem que o isolamento de Wuhan terminaria a 8 de abril.

Uma história de resistência

Wang mudou-se da cidade de Nanjing para Wuhan quando tinha dois anos de idade. Durante a adolescência, resistiu à radical Revolução Cultural de Mao Zedong, trabalhou como estivadora no rio Yangtze e tornou-se argumentista na emissora regional enquanto estudava ficção. Autora com dezenas de contos e romances publicados, já ocupou o cargo de presidente da Associação de Escritores de Hubei, província de que Wuhan é a capital. Nas suas obras, retrata os oprimidos da sociedade, aqueles que não têm esperança mas continuam a lutar. Em 2010, ganhou o Prémio Literário Lu Xun da China com um livro sobre um grupo de amigos cujas vidas são alteradas pelo colapso de uma ponte.

A própria vida de Wang foi afetada quando as autoridades fecharam a cidade de Wuhan a 23 de janeiro. Logo depois, uma amiga sugeriu-lhe que escrevesse sobre como é ser forçada a viver em quarentena. A primeira entrada do seu diário é de 25 de janeiro. A 29 de janeiro, escreveu: "Estamos todos trancados nas nossas casas, mas enquanto não estivermos infetados, estamos bem. Mas para os pacientes que procuram tratamento hospitalar, é muito difícil. Vi vídeos de equipas médicas e pacientes em colapso: nunca senti tanta tristeza e desamparo na minha vida."

A 2 de fevereiro: "Como estava previsto, estamos a ver um pico de casos agora. Alguns dos infetados não conseguem entrar no hospital. Alguém saltou de uma ponte na noite passada. Um trabalhador da comunidade disse-nos que uma família inteira tinha sido infetada, mas não tiveram lugar no hospital. Um morreu. Em desespero, o resto quer acabar com as suas vidas. É muito doloroso ver Wuhan assim."

A narrativa de Fang Fang chamou a atenção do público, que encontrou ali uma voz para a sua própria frustração e tristeza. Os moradores de Wuhan reviam-se nas suas palavras, segundo escreveu a jornalista Yuwen Wu no Independent.

Nos dois meses seguintes, ela lamentou o número crescente de mortos, partilhou histórias de amigos médicos, descreveu episódios da vida quotidiana e criticou as falhas do governo que ela acreditava terem contribuído para aumentar a epidemia. Wang costumava citar os argumentos iniciais do governo de que a doença não se podia transmitir entre humanos e que um contágio era "evitável e controlável". "Isto não é inteiramente uma questão de caráter moral, mas eles fazem parte de uma certa máquina", escreveu ela, referindo-se aos funcionários do Partido. "A máquina faz com que os seus olhos olhem apenas para os seus superiores e se tornem incapazes de ver as pessoas comuns".

A 31 de janeiro escreveu: "Quantas pessoas morreram em Wuhan e quantas famílias foram destruídas? Mas até agora, nenhuma pessoa se desculpou ou assumiu a responsabilidade. Eu já vi um escritor a usar a frase 'vitória completa'. Do que é estão a falar? Wuhan está num estado tão mau, com a vida das pessoas presa por um fio. Onde está a vitória?"

Com mais informações a chegarem ao domínio público, iam ficando cada vez mais claros os erros cometidos em janeiro. "A maior lição é esta: um governo deve colocar a subsistência das pessoas como a principal prioridade; não deve colocar o politicamente correto e as reuniões acima de tudo ", disse a escritora, referindo-se aos congressos do povo que se realizaram no início de janeiro, quando já deveriam ter sido canceladas.

Em resposta a um ensaio anónimo, supostamente escrito por uma rapariga de 16 anos, que sugeria que Wang estava a ser ingrata pelo modo como o governo tinha respondido à epidemia, ela respondeu descrevendo como superou as ideias radicais que foi obrigada e receber durante o período de 1966- 1976 Revolução Cultural. "Tu e teus companheiros terão dias como esse no futuro, nos quais lutam contra vocês próprios para limpar o lixo e as toxinas que foram derramadas nas vossas mentes adolescentes", escreveu.

"O medo do vírus vai permanecer por muito tempo"

"É apenas o diário de uma vítima", disse a escritora numa entrevista recente, após ter terminado o diário. "Eu sou uma das vítimas em Wuhan. Não tinha nenhum objetivo; escrevia o que pensava. Era um registo individual, e o foco estava mais na minha experiência e perspetiva pessoais, por isso era bem diferente das reportagens. A vida é composta de pequenos assuntos, assim como um diário pessoal."

E, numa espécie de conclusão, dizia que para além dos mortos e dos que perderam familiares e amigos, há muito mais gente a sofrer coma situação: "O fato de 9 milhões de cidadãos de Wuhan terem ficado presos por mais de 60 dias é uma espécie de lesão interna. Houve depressão, ansiedade e agitação. Depois de o bloqueio ser suspenso, pode haver sentimentos mais complicados. Por exemplo, as crianças podem não se atrever a sair, e os adultos podem não se atrever a conversar entre si a uma curta distância. O medo do vírus também vai permanecer por muito tempo."

Na sua última publicação, Wang comparou os seus críticos "de extrema esquerda" a um coronavírus que está a infetar e a prejudicar a sociedade chinesa, agradecendo a milhões de leitores por seu incentivo. "Durante estes dias, nunca me senti sozinho", escreveu aos 4,2 milhões de seguidores do Weibo, concluindo com uma citação da Bíblia: "Lutei a boa batalha, terminei a corrida, mantive a fé."

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