No portão 2 do estaleiro de Gdansk ainda se vê a foto de João Paulo II, o papa polaco que teve papel central na queda do comunismo.
No portão 2 do estaleiro de Gdansk ainda se vê a foto de João Paulo II, o papa polaco que teve papel central na queda do comunismo.

Visita ao estaleiro de Gdansk com um dos grevistas que derrubaram o comunismo

Jerzy Borowczar tinha 22 anos quando se juntou a Lech Walesa numa greve que anos mais tarde levaria ao fim do regime comunista. Hoje, aos 67, gostaria de ver nova vida no estaleiro.
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Diante da maquete do estaleiro naval de Gdansk, Jerzy Borowczak aponta para o portão azul e explica que ali perto: “Costumava haver aqui uma cantina, à direita, onde podiam comer mais de 1500 pessoas ao mesmo tempo”. O político e ativista sindical estica o braço para outro ponto e prossegue, sempre em polaco e com recurso a tradutor, “este edifício aqui, de tijolo vermelho, é onde estamos agora”. Foi aqui que Borowczak, Lech Walesa e outros líderes sindicais se reuniram com o diretor do estaleiro para porem fim à greve após verem cumpridas as 21 exigências que tinham feito.

Foi à entrada do Centro Europeu Solidarnosk que nos encontramos com Borowczak. O ativista, hoje com 67 anos, tinha 22 naquele 1980 em que mobilizou os colegas a aderirem a uma greve que acabaria por marcar o princípio do fim do regime comunista na Polónia. Hoje olha para os prédios modernos que nascem em volta do estaleiro - ainda em parte em funcionamento depois de ter sido vendido a uma empresa dinamarquesa - e lamenta que não tenha havido grandes regras urbanísticas para proteger um local histórico.

Para chegar ali, passámos pelo famoso portão N.º 2 do então denominado estaleiro Lenine, onde ainda hoje se podem ver o retrato do papa João Paulo II e a imagem da Virgem, além de bandeiras polacas, tudo por baixo das letras gigantes “Stocznia Gdanska” (Estaleiro de Gdansk, em polaco). Foi dali que Lech Walesa falou à multidão para anunciar o acordo a que chegara com o governo comunista depois das greves de 1980. Borowczak era um dos homens ao lado do eletricista.

Jerzy Borowczak começou a trabalhar no estaleiro em 1979 e no ano seguinte esteve na origem da greve que se seguiu ao despedimento de Anna Walentynowicz, uns meses antes de a operadora de grua chegar à idade da reforma. Somado ao aumento dos preços dos alimentos impostos pelo governo comunista de Edward Gierek no verão de 1980, o afastamento de Walentynowicz foi o ponto de viragem. E depois de vários dias de paralisação dos 17.500 funcionários do estaleiro e de negociações, o executivo acabou por ceder às exigências dos grevistas.

Jerzy Borowczak diante de uma maquete do estaleiro. Com 22 anos, foi um dos organizadores das greves ao lado de Lech Walesa.
Jerzy Borowczak diante de uma maquete do estaleiro. Com 22 anos, foi um dos organizadores das greves ao lado de Lech Walesa.

Assim nascia o Solidariedade (Solidarnosk, em polaco), o sindicato mais tarde transformado em movimento político de que Borowczak chegou a ser um dos dirigentes. Olhando para os edifícios hoje vazios, o ativista explica que muitos já foram ou vão ser destruídos. Com a música dos ensaios para um festival de metal que vai decorrer ali mesmo a poucos metros dentro de algumas horas a fazer-se ouvir, Borowczak admite que preferia que o velho estaleiro continuasse a funcionar como nos seus tempos áureos. Mas compreende que o mundo mudou é preciso seguir em frente, mesmo que os locais onde trabalhou como controlador de qualidade deem lugar a edifícios residenciais hiper modernos.

“A realidade económica é brutal, pelo que países como a China, a Coreia do Sul, o Vietname podem produzir navios muito mais baratos devido à mão de obra. E mesmo a Polónia, quando encomenda novos navios, encomenda-os no estrangeiro e não aqui”, explica. Para o antigo deputado, o próprio sistema de educação falhou, uma vez que as universidades já não formam engenheiros para operar um estaleiro. Neste cenário, até vê com bons olhos as novas construções que por ali nascem e sempre trazem “nova vida” àquele local.

Com o palco do festival a bloquear parte da passagem, regressamos para o Centro Europeu Solidarnosk. Aberto desde 2014, o centro é um museu e biblioteca que dá ao visitante a oportunidade de acompanhar a criação e ascensão, as dificuldades e as vitórias do sindicato, até à eleição de Walesa para presidente da Polónia. Num percurso pelo edifício cujas paredes evocam os cascos dos navios que ali eram construídos, podemos acompanhar Lech Walesa e os trabalhadores polacos, testemunhando a sua luta contra o comunismo numa cidade que fez parte da Liga hanseática e é ainda hoje o segundo maior porto comercial do mar Báltico.

Recriação de greves, exibições multimedia e negociações em mesas redondas dão vida à história. Ali mostra-se como pessoas comuns fizeram coisas extraordinárias, deixando um legado que continua a inspirar movimentos pela liberdade em todo o mundo.

Parado à porta do centro enquanto uma chuva miudinha começa a cair, Jerzy Borowczak recorda não foi assim tão fácil mobilizar os trabalhadores do estaleiro para a greve depois do despedimento de Anna Walentynowicz. “Nem todos a conheciam. Éramos muitos trabalhadores na altura. E só a sua história não teria sido suficiente para mobilizar todo o estaleiro”. O que Borowczak e os outros líderes fizeram foi organizar-se. Tinham cartazes e folhetos para convencer os outros trabalhadores a ultrapassar os seus receios e juntar-se a eles para exigir melhores condições de trabalho.

Além de Lech Walesa e de Jerzy Borowczak, três outros trabalhadores foram essenciais no arranque das greves: Bogdan Borusewicz, Bogdan Felski e Ludwig Pradzynski. Passadas mais de quatro décadas pergunto se os membros deste pequeno grupo mantêm o contacto. Claro que sim! E se Felski se mudou para a Alemanha e Pradzynski foi viver para o campo, para a quinta da família a uns cem quilómetros de Gdansk, tornando os encontros esporádicos, com Borusewicz, deputado tal como Borowczak durante mais de duas décadas, “víamo-nos com frequência”.

E com Walesa? “Também!”, garante. E continua: “Na altura, se não fosse Walesa, não teríamos conseguido o que queríamos. Houve uma altura em que o diretor do estaleiro chegou ao pé de nós e disse que negociava se os restantes trabalhadores voltassem ao trabalho. Walesa disse que não. Se tivesse aceitado, provavelmente teríamos sido presos e acusados de traição.”

Parede do Centro Europeu Solidarnosk.
Parede do Centro Europeu Solidarnosk.

Neste dia não aconteceu, mas quem ali trabalha garante que não é raro ver o antigo eletricista que chegou a presidente - e que dá nome ao aeroporto de Gdansk - a passar pelos corredores do Centro Europeu Solidarnosk, onde tem um gabinete. Aos 81 anos, o líder histórico do Solidariedade continua a ser uma voz ativa, tendo em março enviado uma carta ao presidente americano Donald Trump a condenar a forma como este tratara o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky numa visita à Casa Branca.

A Polónia hoje, Fátima, futebol e Cristiano Ronaldo

Com esta conversa a decorrer poucos dias depois da vitória do nacionalista Karol Nawrocki sobre o centrista Rafal Trzaskowski nas presidenciais polacas, quero saber como é que Jerzy Borowczak olha para o seu país, passadas quase quatro décadas do regresso da democracia, em 1989. O político e ativista admite que teria preferido ver o atual presidente da Câmara de Varsóvia no poder, mesmo se Nawrocki é aqui de Gdansk. Mas “se mais de metade dos eleitores” escolheram o candidato apoiado pelo partido Lei e Justiça (PiS, cujos fundadores, os irmão Lech e Jaroslaw Kaczynski, estiveram ao lado de Lech Walesa no movimento anti-comunista antes de se afastarem deste politicamente ), “é a democracia.”

Não muito longe do local onde a II Guerra Mundial começou - com o ataque nazi aos depósitos militares na península de Westerplatte, na que na altura era a Cidade Livre de Danzig (só após a guerra voltou a ser parte da Polónia), Jerzy Borowczak lamenta o avanço do populismo na Europa e também no seu país. E admite que tudo pode acontecer no futuro próximo: “Pode haver uma revolução, pode haver uma guerra, como a que vemos na Ucrânia, aqui junto à nossa fronteira”.

Para terminar o nosso encontro numa nota mais positiva, pergunto se Jerzy Borowczak já alguma vez visitou Portugal. E a resposta é sim, algumas vezes. A primeira terá sido em 1993, quando acompanhou Lech Walesa, então presidente, numa visita que o levou a Lisboa, mas também a Fátima, onde se lembra de ter ficado impressionado com a história dos Pastorinhos.

As restantes visitas foram para ver jogos de futebol. E Borowczak confessa-se fã de Cristiano Ronaldo, admitindo que o avançado português pode já ter mais de 40 mas está em forma. E adoraria vê-lo jogar.

*DN viajou a convite da embaixada da Polónia

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