Há precisamente 19 dias a Ucrânia apanhou a Rússia e o resto do mundo de surpresa com uma incursão militar transfronteiriça na região de Kursk, a primeira em solo russo desde a Segunda Guerra Mundial. “Houve surpresa para todos, isso parece-me incontornável. Moscovo só não foi surpreendido, como ficou perante uma situação embaraçosa e difícil de explicar, ao falharem identificar um efetivo de forças tão grande a concentrar-se junto à fronteira”, refere ao DN o major-general Carlos Branco. .Kiev afirma controlar, até ao momento, uma área de cerca de 1250 quilómetros quadrados e quase uma centena de localidades. No decorrer desta operação militar, as tropas ucranianas conseguiram também destruir as três pontes da região que atravessam o rio Seym, e que ligava as forças russas ao distrito de Glushkovsky, impedindo assim a Rússia de fazer entrar ou sair mantimentos e equipamento numa área de cerca de 640 quilómetros quadrados. .“Esta operação vai ter consequências no curso da guerra. E já mudou, claramente, as pessoas podem dizer que não, em particular os russos dizem que não, mas mudou a partir do momento em que, desde a Segunda Guerra Mundial, nunca houve ninguém que invadisse o território russo. A entrada em território russo era uma linha vermelha para Putin e para o Kremlin, com ameaças do uso de armas nucleares, e já vimos que afinal não é uma linha vermelha. Portanto, isto já mudou, toda a narrativa russa foi mudada, é algo que marcará a História, defende ao DN o major-general João Vieira Borges, coordenador do Observatório de Segurança e Defesa da Sedes. “Acho que podemos presumir precisamente o contrário. Não é uma opinião, são factos”, contrapõe Carlos Branco. “Eu sei que esta operação foi planeada com uma grande componente de propaganda e de operações psicológicas, exatamente para dar essa noção, mas ainda é muito cedo para se dizer seja o que for”, prossegue o especialista em assuntos militares..A incursão, apelidada pela Rússia de “ataque terrorista”, obrigou o Kremlin a enviar para a zona mais tropas e mais armamento, tendo decidido apostar em “operações antiterroristas” para repelir ataques e avanços ucranianos. Paralelamente, retiraram da zona mais de 120 mil civis. “A resposta da Rússia, até agora, foi aquilo que foi possível, porque há muitos civis na zona e a Rússia está mais preocupada, nesta altura, antes de fazer uma operação ofensiva, em retirar os seus civis, esta é uma explicação possível. A outra explicação é não ter capacidade para o fazer, (...) mas eu tenho muitas dúvidas que a Rússia não faça, mais tarde ou mais cedo, uma operação ofensiva de grande envergadura para fazer recuar as forças ucranianas até à fronteira”, vaticina Carlos Branco. .Para João Vieira Borges, o Kremlin “tomou a decisão que devia tomar”. “Transformou aquela operação numa região em que não tinha muitas forças militares uma operação de luta antiterrorista, no sentido de, em primeiro lugar, manter as forças naquilo que lhe interessa, no eixo de Donetsk. Em segundo lugar, tratar o assunto com as forças antiterroristas e não com as forças armadas é tratar como uma incursão secundária sem consequências para a Rússia e é bom que não pareça nas notícias para não tornar a situação muito crítica em termos de moral do povo russo (...) É uma estratégia, vamos ver no futuro se é correta, mas, neste momento, é compreensível”, refere o mesmo analista militar. .O presidente Volodymyr Zelensky esclareceu há cerca de uma semana que o objetivo de Kiev é criar uma zona tampão na região para evitar novos ataques russos. Dias antes, um dos seus assessores, Mykhailo Podolyak, já havia dito que a Ucrânia não pretenda ocupar território da Rússia, mas sim pressionar Moscovo a “entrar num processo de negociação justo”. “Na fase atual, dada esta aventura, não vamos conversar”, respondeu Yuri Ushakov, conselheiro diplomático do presidente Vladimir Putin, acrescentando que “neste momento, iniciar um processo de negociação seria totalmente inapropriado”..Perante este impasse entre as duas partes no que diz respeito a negociações imediatas são vários os cenários que vislumbram como possíveis para esta operação militar especial da Ucrânia..Recuar, mas dentro do território russo.Para o major-general João Vieira Borges existem três cenários possível, sendo o mais provável “recuar para uma posição, basta olhar para o mapa, que apresenta um obstáculo natural, o tal rio das pontes”. “Ao recuar ganha de sustentabilidade o apoio, mas fica com uma área menor, à volta de 750 quilómetros quadrados, mas tapa uma espécie de enclave que ali está, e consegue segurar até negociar politicamente e com menos baixas, porque tem proteção”, prossegue o coordenador do Observatório de Segurança e Defesa da Sedes. “No fundo, funcionará quase como território ucraniano até haver uma negociação política”, conclui este especialista. O grande senão deste cenário, na opinião de João Vieira Borges, “é que a Rússia diz, e vai continuar a dizer, que enquanto houver ocupação de território não há qualquer tipo de negociação” e, na perspetiva de uma nova conferência de paz em novembro, “pode ser a comunidade internacional a instar a Ucrânia a voltar às fronteiras internacionais para negociar e pressionar a Rússia a estar presente, porque a Rússia vai usar isso como estandarte”. “Mas da mesma maneira, a Ucrânia podia dizer que enquanto houver forças russas no seu território também não negoceia, não é?”, questiona..Continuação dos combates.O major-general Carlos Branco acredita que “não há negociações de forma justa”, mas sim “negociações possíveis, consoante a força que cada parte tiver”, ou seja, “se a correlação de forças for simétrica, terá que haver mais compromissos, se a relação de forças for assimétrica, a parte que está em vantagem terá mais vantagens”. Ou seja, “o que a Ucrânia pretende é ocupar território russo para depois ter esse território como moeda de troca e ir a conversações. Kiev já deu a entender que estaria disponível para ir a conversações a breve trecho, mas os russos disseram que, nesta altura, não há condições para tal”. E é com base nestas premissas que este especialista em assuntos militares acredita que o cenário mais provável é o seguinte: “temos de estar preparados para a continuação dos combates e, eventualmente, a tentativa da Rússia de recuperar territórios russos ocupados nesta altura pelos ucranianos”. João Vieira Borges também vê como uma possibilidade a Ucrânia “manter e alargar a zona de 1250 quilómetros quadrados que controla atualmente enquanto puder”. Mas recorda que esta hipótese “cria riscos enormes, porque é preciso apoio logístico, porque as forças ucranianas estão descobertas em termos aéreos, cria muitas baixas e destruição de muitos meios, é de alto risco”..“A Ucrânia quer, de facto, ganhar tempo. Mas a Ucrânia quer fundamentalmente resolver isto antes da tomada de posse da nova administração norte-americana, porque, se ganhar Trump a situação da Ucrânia não será muito confortável, e também parece que Kamala Harris tem uma posição um pouco diferente da administração Biden relativamente ao apoio que os Estados Unidos devem continuar a dar à Ucrânia. Teremos de ver se Kamala Harris consegue sobrepor a sua vontade ao establishment”, defende o major-general Carlos Branco. “Perante estas incertezas, Zelensky está a fazer os possíveis e os impossíveis para, quando a nova administração tomar posse, a situação do futuro da Ucrânia estar clarificada e conseguir um acordo de paz até novembro. Se vai conseguir, sou muito cético”, conclui..Zona-tampão ucraniana.Carlos Branco também vê como uma probabilidade, olhando para a situação no campo de batalha na quinta-feira, data em que falou com o DN, “a Rússia não ter capacidade para recuperar estes territórios, Zelensky constituir uma zona-tampão e, perante isso, Moscovo irá para a mesa de negociações numa situação mais fragilizada e a Ucrânia numa situação mais forte, que é, no fundo, o objetivo que eles pretendem atingir”..Recuar às suas fronteiras e reorientar forças.O terceiro cenário avançado pelo major-general João Vieira Borges é a Ucrânia “recuar, quando entender adequado, às suas fronteiras internacionais e depois reorientar essas forças de reserva para Donetsk ou Zaporíjia, para onde entender adequado”..ana.meireles@dn.pt