Mais de dois anos depois de os EUA acusarem pela primeira vez a Coreia do Norte de estar a fornecer artilharia à Rússia, e dez meses depois de destroços de mísseis balísticos norte-coreanos terem sido identificados em solo ucraniano, Kiev e os aliados dão como certa a presença de soldados de Pyongyang próximo do campo de batalha. “Esta é uma clara escalada da parte da Rússia”, acusou esta sexta-feira o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Mas o que está por detrás desta cooperação entre Moscovo e Pyongyang?.A primeira informação de que soldados norte-coreanos podiam estar a preparar-se para ir para a Rússia foi partilhada pelo presidente ucraniano a 13 de outubro. Quatro dias depois, Zelensky punha um número na ameaça contra o seu país, alegando que Pyongyang estaria preparado para pôr nas mãos de Moscovo cerca de dez mil militares..No dia seguinte, a Coreia do Sul confirmava essas informações, sugerindo que um primeiro contingente de 1500 soldados das Forças Especiais norte-coreanas já estariam em Vladivostok, sendo o objetivo destacar um total de 12 mil militares. Na quarta-feira, os EUA alegaram que já seriam três mil, com Kiev a dizer que os primeiros já estariam em Kursk, a região russa onde lançou a sua incursão-surpresa em agosto..Esta quinta-feira, Zelensky foi mais longe: “Segundo os serviços de informação, espera-se que os primeiros soldados norte-coreanos sejam destacados pela Rússia para zonas de combate já entre 27 e 28 de outubro. Esta é uma clara escalada da parte da Rússia”, escreveu no X. “O envolvimento real da Coreia do Norte no combate não deve ser recebido com indiferença ou comentários incertos, mas com uma pressão tangível sobre Moscovo e Pyongyang.”.Depois dos desmentidos iniciais, o discurso dos dois países envolvidos mudou nos últimos dias. “Se aquilo que a comunicação social internacional está a dizer acontecer, penso que será feito de acordo com as regras do direito internacional”, disse Kim Jong Gyu, vice-ministro dos Negócios Estrangeiros norte-coreano, responsável pelas relações com a Rússia, citado pela agência oficial KCNA..Na véspera, o presidente russo, Vladimir Putin, não tinha confirmado, nem desmentido, quando questionado sobre imagens satélite que mostram as alegadas movimentações das tropas norte-coreanas. “As imagens são uma coisa séria. Se há imagens, então refletem algo”, disse, alegando que o Ocidente é que levou à escalada do conflito ao envolver diretamente oficiais e instrutores de países da NATO na Ucrânia..Tratado de Defesa Mútua.A aproximação entre os dois países tem vindo a acontecer desde o início da guerra na Ucrânia, culminando na assinatura de um Tratado de Defesa Mútua, a 19 de junho, pelo presidente russo, Vladimir Putin, e pelo líder norte-coreano, Kim Jong-un, numa cimeira em Pyongyang (que o russo não visitava há 24 anos). Segundo o documento, Rússia e Coreia do Norte “prestarão imediatamente assistência militar” à outra parte em caso de guerra “devido a uma invasão armada”..Uma das sociedades mais militarizadas do mundo, com 1,3 milhões de efetivos no ativo (além de milhões na reserva), a Coreia do Norte é - como a Rússia - uma das nove potências nucleares. Ao longo dos anos, desenvolveu um importante arsenal de mísseis (incluindo alguns com a capacidade de chegar aos EUA), mas o seu equipamento militar convencional está envelhecido. Esta é uma das área em que Moscovo pode ajudar, para lá de enviar dinheiro, comida ou outra assistência direta. Mas não é a única..O último teste de um míssil norte-coreano, em junho, não terá sido tão bem-sucedido como Pyongyang alegou. E as ambições espaciais do regime também embateram em obstáculos, quando falhou a primeira tentativa de colocar um satélite em órbita, no passado mês de maio. Já para não falar no apoio que os russos podem dar às ambições no desenvolvimento de submarinos capazes de disparar mísseis..Além da assistência em caso de ataque, o tratado assinado entre Putin e Jong-un abre a porta à cooperação militar entre os dois países, incluindo no programa espacial e até no nuclear (o texto fala em “energia nuclear civil”). Isto apesar de, em teoria, Moscovo estar proibido de ajudar nestas áreas ao abrigo das sanções aprovadas na ONU. Mas Putin, que não é fã das sanções internacionais (ele próprio é alvo delas), já as violou ao comprar armas a Pyongyang..13 mil contentores com armas.Seul alega que, desde agosto de 2013, os norte-coreanos já enviaram mais de 13 mil contentores com artilharia, mísseis e outras armas para a Rússia. Uma fonte disse este mês ao jornal britânico The Times que os norte-coreanos são responsáveis por fornecer metade de todas as peças de artilharia usados pelos russos na Ucrânia. Os soldados serão mais um recurso à disposição de Moscovo, que além de tentar recuperar o território em Kursk continua a avançar no leste da Ucrânia..“Os recursos, tecnologia militar e capacidades que a Rússia pode providenciar à Coreia do Norte em troca do seu apoio poderá mudar fundamentalmente a situação de segurança na Península Coreana e na região do Indo-Pacífico”, indicou o diretor da Iniciativa de Segurança no Indo-Pacífico do Centro Scowcroft e ex-oficial de Inteligência dos EUA para a Coreia do Norte, Markus Garlauskas, numa análise do think tank Atlantic Council..Apesar de tudo o que pode ganhar, o apoio a Moscovo também pode sair pela culatra ao regime de Kim. A aproximação aos russos pode afastá-lo daqueles que continuam a ser os seus principais parceiros estratégicos e comerciais, a China. Isto naquele que devia ser o “ano de amizade” por ocasião dos 75 anos das relações diplomáticas entre os dois países. Pequim tem defendido “uma solução política” para a guerra na Ucrânia..Por seu lado, também Moscovo tem muito a perder. Até agora Seul tem fornecido apenas ajuda humanitária a Kiev, mas já ameaçou poder passar também a ajudar a nível ofensivo - e os sul-coreanos foram, no ano passado, o nono maior exportador de armas a nível mundial. O que poderia levar a que, 70 anos depois do armistício na Península Coreana, Norte e Sul possam acabar a travar uma guerra na Europa..susana.f.salvador@dn.pt