Quais os desafios que implica a situação geopolítica no Cazaquistão, o 9.º maior país do mundo, mas sem acesso ao mar, e com dois vizinhos gigantes, a Rússia e a China?O Cazaquistão está estrategicamente posicionado entre a Europa e a Ásia, partilhando fronteiras com duas potências globais. No entanto, apesar das complexidades geográficas e geopolíticas, o Cazaquistão tem mantido a paz, a estabilidade e um crescimento consistente. Isso deve-se, em grande parte, à sua política externa equilibrada e multivetorial - uma escolha consciente baseada não em ideologia, mas em pragmatismo, diálogo e respeito mútuo. As nossas relações com a Rússia continuam a ser estratégicas e comprovadas ao longo do tempo. Partilhamos a fronteira terrestre contínua mais longa do mundo - mais de 7500 quilómetros - e mantemos uma cooperação estreita através de plataformas como a União Económica Eurasiática, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, o Fórum de Cooperação Inter-regional Cazaquistão-Rússia, bem como outros mecanismos regionais e internacionais. Igualmente importantes são os nossos laços com a China. Baseada em séculos de história comum, a relação bilateral evoluiu para o que descrevemos como uma “parceria estratégica abrangente e eterna”. Trabalhamos em estreita colaboração em importantes iniciativas conjuntas - tanto regionais como globais - que refletem a profundidade da nossa cooperação. A China é o maior parceiro comercial do Cazaquistão e um dos cinco maiores investidores estrangeiros. Estamos a aumentar constantemente as exportações de produtos cazaques para o mercado chinês e a investir em corredores de transporte que transformam a nossa posição sem litoral numa vantagem geopolítica.Sobre a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, qual é a posição do Cazaquistão?O confronto militar entre a Rússia e a Ucrânia é lamentado por todos os amigos destas nações. O Cazaquistão multinacional, onde cerca de 130 etnias, incluindo russos e ucranianos, vivem há muitos anos, está profundamente afetado por esta trágica discórdia entre países outrora próximos e irmãos. Estamos convencidos de que não há alternativa a um diálogo sério e construtivo baseado na Carta das Nações Unidas e nos princípios fundamentais do direito internacional. Salientamos a importância de manter e respeitar a soberania e a integridade territorial de todos os Estados. As sanções e o confronto geopolítico não só não resolvem o problema, como têm impacto negativo na economia global, causando graves danos às potências globais e a países terceiros. O envolvimento em processos de pacificação constitui a essência da nossa estratégia de política externa. Astana, mantendo a sua posição imparcial, está disposta a apoiar o processo de negociação com todos os meios ao seu alcance.É, a diplomacia multivetorial, a fórmula ideal para uma potência média no panorama global atual?Para o Cazaquistão, certamente sim. A nossa política externa, delineada no Conceito 2020-2030, prioriza o equilíbrio, o envolvimento construtivo e os interesses soberanos. Mantemos relações diplomáticas com 186 países e operamos 122 missões no exterior, o que representa tanto a nossa amplitude geográfica como a nossa ambição diplomática. Consideramo-nos uma potência média com uma voz distinta. Estamos comprometidos com a paz, a cooperação regional, a não proliferação nuclear e o multilateralismo. A nossa estratégia não está alinhada nem se opõe a blocos, é cooperativa, aberta e previsível. O Cazaquistão construiu laços fortes com os vizinhos da Ásia Central, manteve uma aliança estratégica com a Rússia, promoveu um envolvimento dinâmico com a China e aprofundou a cooperação com os Estados Unidos e a União Europeia. Esta é a “diplomacia da estepe” em ação - uma abordagem enraizada no consenso, na hospitalidade e no intercâmbio pacífico nos vastos espaços da Eurásia.Nessa lógica da diplomacia multivetorial, quão importantes são as relações entre o Cazaquistão e os EUA e entre o Cazaquistão e a UE?Os EUA são um parceiro estratégico fundamental. Há mais de 30 anos, mantemos uma cooperação aberta, respeitosa e mutuamente benéfica. Os EUA estão entre os maiores investidores no Cazaquistão, com investimentos acumulados superiores a 65 mil milhões de dólares. Só em 2024, o comércio bilateral atingiu 3,4 mil milhões de dólares, tornando o Cazaquistão o principal parceiro comercial dos EUA na Eurásia Central. A Declaração Conjunta sobre a Parceria Estratégica Reforçada estabeleceu uma base sólida para a colaboração futura. A reunião entre o ministro dos Negócios Estrangeiros do Cazaquistão, Murat Nurtleu, e o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, reafirmou a nossa visão comum de estabilidade e crescimento através do envolvimento. Entretanto, a UE continua a ser o maior parceiro económico do Cazaquistão. Em 2024, o volume de negócios atingiu um recorde de 48,8 mil milhões de dólares, o que representa um aumento de 18,2 % em relação ao ano anterior. A UE é responsável por mais de 200 mil milhões de dólares em investimentos acumulados e mais de 3000 empresas ativas no Cazaquistão. A nossa cooperação estende-se agora às matérias-primas críticas - o Cazaquistão fornece 19 das 34 matérias-primas consideradas estratégicas pela UE -, bem como ao hidrogénio verde, às infraestruturas de transporte e à conectividade digital. O Cazaquistão está a expandir ativamente a capacidade dos seus portos no Mar Cáspio - Aktau e Kuryk -, que servem como centros vitais ao longo da Rota Internacional de Transporte Transcaspiana, ou Corredor Médio. Estes investimentos estratégicos são fundamentais para a nossa transformação de uma nação sem litoral para uma nação com ligação terrestre, facilitando o trânsito fluido de energia, matérias-primas e mercadorias da Ásia Central para a Europa e além. Esperamos aprofundar a cooperação com a UE através da iniciativa Global Gateway e com outros parceiros com ideias semelhantes para promover uma Eurásia mais conectada e resiliente. A visão de longo prazo do Cazaquistão é atuar como uma ponte de confiança entre o Oriente e o Ocidente, baseada em valores comuns, confiança mútua e desenvolvimento sustentável.António Guterres esteve há dias em Astana. Que significado tem a visita do secretário-geral da ONU?O Cazaquistão continua empenhado nos princípios fundamentais do multilateralismo, da diplomacia e do diálogo que estão na base do trabalho da ONU. O secretário-geral visitou o Cazaquistão, apesar da sua agenda muito preenchida, na véspera da 80.ª sessão da Assembleia-Geral da ONU. Este facto reveste-se de particular importância. António Guterres valorizou muito a contribuição do Cazaquistão para o reforço da cooperação internacional, a promoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e o desarmamento nuclear. Durante a visita, foi inaugurado o primeiro Centro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável na Ásia Central.Apesar da sua pequena dimensão e a localização distante, Portugal é visto como parceiro interessante para o Cazaquistão? Sem dúvida. Apesar da distância geográfica, os nossos países partilham uma perspetiva voltada para o futuro - ambos servem como portas de entrada entre continentes. Portugal é um parceiro valioso para o Cazaquistão, não só bilateralmente, mas também no contexto mais amplo da UE-Ásia Central. O diálogo político é estável e construtivo. Os nossos presidentes reuniram-se à margem das 74.ª e 78.ª sessões da Assembleia-Geral da ONU em Nova Iorque, onde o presidente Kassym-Jomart Tokayev manteve conversações substantivas com o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, sublinhando o interesse mútuo em reforçar a agenda bilateral. Lisboa recebeu várias delegações de alto nível do Cazaquistão, incluindo a do vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros em 2023, bem como representantes dos setores do desenvolvimento digital e da juventude. Os ministros dos Negócios Estrangeiros portugueses realizaram visitas oficiais a Astana em 2010, 2012 e 2014. As relações económicas e tecnológicas entre o Cazaquistão e Portugal estão a ganhar um impulso tangível. O Cazaquistão participou duas vezes na Web Summit - em 2017 e em 2023 - e continua a estar representado em grandes eventos internacionais em Portugal. As consultas políticas regulares entre os ministérios dos Negócios Estrangeiros, incluindo a última ronda realizada em Lisboa, em 2022, refletem a crescente intensidade do nosso diálogo. A diplomacia parlamentar também está a avançar, com visitas dos presidentes do Senado do Cazaquistão em 2009 e 2024 e grupos de amizade ativos a operar em ambos os Parlamentos. O trabalho das missões diplomáticas em Lisboa e Astana continua a dinamizar todo o espectro da cooperação bilateral. O nosso quadro jurídico está em constante expansão e estão a ser exploradas oportunidades promissoras de investimento conjunto em tecnologias limpas, inovação digital e indústria ligeira.Há empresas portuguesas a apostar no Cazaquistão?Congratulamo-nos com o crescente interesse das empresas portuguesas no Cazaquistão e, de forma mais ampla, na Ásia Central. O comércio bilateral ascende a cerca de 50 milhões de euros por ano, enquanto o investimento português acumulado no Cazaquistão ultrapassou os 253 milhões de dólares desde 2005, o que atesta a forte confiança mútua entre as comunidades empresariais. Cerca de 20 empresas com capital português operam no Cazaquistão, promovendo projetos em setores-chave. A cooperação cultural e humanitária também está a ganhar impulso. Concertos, festivais, exposições e intercâmbios académicos estão a ajudar a promover uma compreensão mais profunda e a fortalecer os laços culturais entre as nossas nações.Qual a estratégia económica do Cazaquistão, país rico em petróleo?O Cazaquistão está focado num crescimento sustentável, diversificado e impulsionado pela inovação. O nosso objetivo é duplicar o nosso PIB para 450 mil milhões de dólares até 2029, através de taxas de crescimento anual de 6-7%. Esta meta ambiciosa assenta em três pilares fundamentais: infraestruturas, energia verde e transformação digital. A nossa localização dá-nos um potencial de trânsito único: mais de 80% das rotas comerciais terrestres entre a China e a Europa passam pelo Cazaquistão. Investimos em infraestruturas estratégicas, como a autoestrada Europa Ocidental-China Ocidental, os portos do Mar Cáspio, o porto seco de Khorgos na fronteira com a China e o corredor ferroviário China-Irão. Em 2024, o Corredor Médio movimentou 4,5 milhões de toneladas de carga - oito vezes mais do que em 2020. Até 2030, o Cazaquistão pretende aumentar os volumes globais de trânsito para mais de 74 milhões de toneladas. Também estamos comprometidos com a neutralidade de carbono até 2060. As energias renováveis, incluindo eólica, solar e hidrolétrica, estão a ganhar impulso. É importante ressaltar que estamos a introduzir a energia nuclear pacífica na nossa matriz energética - decisão apoiada pela população num referendo nacional e implementada com total supervisão da AIEA.A energia nuclear civil é agora uma realidade. Como é que se concilia com a tradição antinuclear do Cazaquistão?O Cazaquistão há muito defende um mundo livre de armas nucleares. Renunciámos voluntariamente ao quarto maior arsenal nuclear do mundo, fechámos o local de testes nucleares de Semipalatinsk e instituímos o Dia das Nações Unidas contra os Testes Nucleares, que será assinalado em breve, a 29 de agosto. Ao mesmo tempo, reconhecemos o papel da energia nuclear civil na consecução dos objetivos climáticos. Estes dois pilares - desenvolvimento energético e desarmamento - são totalmente compatíveis. A energia nuclear pa- cífica não contradiz esse legado, complementa-o. O nosso objetivo é aproveitar energia limpa e segura, mantendo compromissos rigorosos de não-proliferação. O Cazaquistão também abriga o Banco de Urânio de Baixo Enriquecimento da AIEA, refletindo a confiança internacional. Como potência média responsável, o Cazaquistão continuará a liderar pelo exemplo - promovendo o desarmamento, fortalecendo a segurança nuclear e avançando o diálogo internacional sobre os usos pacíficos da energia atómica.Como é gerida a diversidade étnica no Cazaquistão, com a maioria cazaque a coexistir com uma importante minoria eslava e não só? A diversidade é um dos maiores pontos fortes do Cazaquistão. A nossa população inclui cerca de 130 grupos étnicos e 4000 organizações religiosas. A Constituição garante a igualdade para todos os cidadãos, enquanto a Assembleia do Povo do Cazaquistão promove o diálogo e a coesão. O nosso modelo enfatiza a cidadania partilhada em detrimento de identidades paralelas. A língua, a cultura e as tradições são respeitadas, mas sempre dentro de um quadro mais amplo de unidade e identidade cívica.O soft power do Cazaquistão vai desde a tradição dos cavalos até ao cantor Dimash?O soft power do Cazaquistão tem as suas raízes tanto na tradição como na modernidade. Somos a terra dos primeiros cavalos domesticados, das maçãs selvagens e das tulipas - símbolos de resistência, beleza e originalidade. A nossa presença cultural global está a crescer, desde o aclamado cantor Dimash Kudaibergen até ao cinema e design contemporâneos cazaques. Promovemos a cultura no exterior por meio dos Centros Abai e participamos ativamente dos programas de Património da UNESCO. O Cazaquistão reintroduzirá os cavalos de Przewalski na natureza até 2029, como parte de um compromisso ambiental mais amplo apoiado por parceiros internacionais. A nossa nova iniciativa de branding nacional “Born Bold” apresenta o Cazaquistão como um país jovem, criativo e aberto ao mundo..A bomba que pôs Estaline a par da América ainda mata?