Porque decidiu fazer uma História “Total” da Segunda Guerra Mundial? Há inúmeras histórias da Segunda Guerra Mundial, mas muitas são histórias militares, que contam as operações e que são de grande qualidade. Mas eu queria fazer algo diferente, reintegrando os aspetos militares num quadro global. Trata-se da história total ou da história global. Não se pode falar da Segunda Guerra Mundial apenas como uma série de operações e batalhas. Muitos outros elementos entram em jogo, especialmente porque esta guerra, tanto para os europeus como para os povos da Ásia-Pacífico, foi também um período marcado pela ocupação e pela imposição de regimes autoritários, ditatoriais ou totalitários. E é isso que torna a Segunda Guerra Mundial tão diferente da Primeira..Isso levou-o a colocar o foco nos aspetos sociais e económicos?Sim, porque não se pode compreender as operações militares sem se compreender que a economia é usada para construir um instrumento militar. Depois da Segunda Guerra Mundial, os alemães disseram que havia duas razões para terem perdido na Rússia. Primeiro, porque estava frio e, segundo, porque Hitler tinha cometido muitos erros estratégicos. Mas esquecem-se de uma coisa: a economia soviética era mais poderosa que a alemã. A vitória soviética foi a vitória do povo, do Exército Vermelho e da economia soviética. Além disso, todos os beligerantes tiveram de motivar o povo para a luta. É preciso transformar pessoas comuns, que não gostam da morte, em assassinos. Não é fácil. A componente ideológica, social, os objetivos da guerra, a propaganda, todos esses elementos têm um papel importante. .Uma das suas conclusões é que as batalhas da Segunda Guerra Mundial - Midway, Estalinegrado, Kursk, Dia D, Okinawa - não foram decisivas. A capacidade dos EUA e da Grã-Bretanha, mas também da URSS, de mobilizar rapidamente uma grande força militar e homens foi mais eficaz do que o número de soldados e definiu o rumo da guerra?Sim, claro. Se virmos bem, Midway em junho de 1942 é um ponto de viragem, o desembarque anglo-americano no Norte de África em novembro de 1942 é um ponto de viragem, Estalinegrado é um ponto de viragem. O que quero dizer é que não existe uma batalha decisiva, no sentido em que Waterloo foi decisiva. Depois de Waterloo, Napoleão acabou. Depois de Estalinegrado, a Alemanha estava enfraquecida mas a lutar e os soviéticos ainda tiveram de intervir em Berlim, rua a rua, bairro a bairro, casa a casa. Não houve uma batalha decisiva, houve sim algumas batalhas importantes. Mas se quisermos compreender a Segunda Guerra Mundial, temos de perceber que os factores económicos, sociais, políticos e geopolíticos foram mais importantes do que os militares. .Diz não haver um só ponto de viragem, nem mesmo Pearl Harbor a 7 de dezembro de 1941?Claro que foi um ponto de viragem, mas permita-me que assinale que não foi um ponto de viragem militar, mas sim diplomático. Pearl Harbor não teve qualquer impacto militar. Deixe-me explicar. Os japoneses queriam destruir os porta-aviões. Não havia nenhum porta-aviões em Pearl Harbor. Estavam todos a transportar aviões para reparações. A maioria dos navios destruídos foi recuperada. Os japoneses cometeram um erro: concentraram-se nos navios e não na base, nas docas, nas infraestruturas. Portanto, Pearl Harbor teve um enorme impacto, foi um choque, mas militarmente, o efeito foi muito limitado. Por outro lado, os efeitos geopolíticos de Pearl Harbor foram enormes. Os EUA entraram em guerra com o Japão. E, acima de tudo, Hitler e Mussolini cometeram a loucura de declarar guerra aos EUA. Portanto, esse foi o ponto de viragem mas não militar. A prova é que em junho de 1942, ou seja, seis meses depois, os EUA infligiram uma derrota naval terrível ao Japão em Midway. Em seis meses, a Marinha americana já tivera tempo de restaurar as suas capacidades..No seu livro, desfaz várias ideias preconcebidas. Uma delas é que o Japão se rendeu por causa das bombas atómicas. Não foi?Em Portugal, a guerra está mais distante, mas ainda hoje vivemos, na Europa como na Ásia, de mitologias que foram criadas pela propaganda. Por exemplo, que Rommel era um grande chefe de guerra, que fez uma guerra cavalheiresca, que não era um nazi. Bem, sim, Rommel era nazi. E não era um general tão bom como as pessoas pensam. Ora, uma das ideias erradas mais comuns é que o Japão se rendeu por causa de Hiroshima e Nagasaki. Ora Hiroshima foi a 6 de agosto, e o discurso do Imperador a 15. Portanto, nove dias depois. Temos de ter em conta esta dimensão cronológica. A verdade é que o choque nuclear foi significativo, mas não foi entendido como algo radicalmente novo. Os japoneses acreditavam que se tratava de uma bomba superpoderosa que podia ser diferente em grau, mas não em essência. A 7 de agosto, o prefeito de Hiroshima apelou aos japoneses para que voltassem ao trabalho! O que fez uma enorme diferença foi a declaração de guerra da União Soviética, que até então estava ligada ao Japão por um pacto de não agressão, e o facto de a ofensiva iniciada a 9 de agosto não só ter apanhado os japoneses de surpresa, como ter avançado muito rapidamente. O Exército Vermelho chegou rapidamente a Pyongyang. O Japão viu-se então confrontado com um dilema corneliano: preferia uma ocupação pelo Exército Vermelho ou uma ocupação pelos americanos? A partir de então, o imperador, vai apoiar a luta pela paz. E, no entanto, nunca se fala da ofensiva soviética. Porquê? Porque somos vítimas de uma narrativa. Os EUA dizem “o Japão rendeu-se graças à bomba atómica”, o que tem um efeito muito real. Os soviéticos não vão ocupar o Japão. Não vai haver, como na Alemanha, uma ocupação pelas quatro potências vencedoras. Por outro lado, o imperador pode fazer uma cara sorridente e dizer que, embora os seus generais quisessem ir até ao fim, ele era um líder humano, preocupado com a vida dos seus súbditos. É esta narrativa que prevalece até hoje..Que mais ideias preconcebidas sobre a Segunda Guerra temos de repensar?Não sei se este estereótipo é comum em Portugal, mas há a ideia é que os alemães são muito organizados. Ora se virmos como funcionava a logística alemã na Segunda Guerra Mundial, ficamos chocados porque era caótica. Quando os alemães chegaram diante de Moscovo, mesmo que os soviéticos não os tivessem parado, eles não tinham gasolina suficiente para avançar. Rapidamente, ficaram sem munições, sem roupa quente para o inverno, sem equipamento e sem reforços. A guerra foi perdida em dezembro de 1941, por razões logísticas. Isto contrasta com a ideia que temos de uma Alemanha muito organizada, etc. Outra lenda é a de que a economia soviética foi salva pelos EUA. Na Guerra Fria, os americanos afirmavam que a União Soviética tinha sido salva graças à ajuda americana; os soviéticos garantiam que não. E tinham razão. A ajuda americana veio sobretudo depois de julho de 1943, ou seja, depois de Estalinegrado e de Kursk. Outro ponto a salientar é que, de um dólar do Lend-Lease, apenas 25 cêntimos iam para equipamento militar. O resto era para botas, roupas, casacos forrados a pele, uma margarina que os soviéticos adoravam chamada fatback. Em suma, a ajuda americana permitiu que os soviéticos se concentrassem na indústria de guerra, mas como essa significava sacrificar as indústrias de consumo, e os soviéticos não tinham nada para comer, os americanos permitiram que o povo soviético resistisse. É essa a realidade..História Total da Segunda Guerra MundialOlivier WieviorkaCrítica864 páginas29,90 euros.Escreve no livro que a Segunda Guerra Mundial faz parte do presente do mundo. Quando ouvimos Vladimir Putin falar em desnazificação da Ucrânia, percebemos que a Segunda Guerra Mundial ainda está presente na mente do chefe Estado russo?A Segunda Guerra Mundial está presente nos indivíduos. Nos países que foram ocupados, todas as famílias foram, em certa medida, vítimas. As famílias judias, claro. Mas também é difícil ser filho de colaboracionista. É difícil ser herói ou filho de herói. É um fardo pesado. Além disso, há uma questão que todos os que estiveram sob ocupação se colocam: o que é que eu teria feito? Devia trabalhar para os alemães? Se era patrão, devia fechar a fábrica e causar desemprego? Ou devia continuar e ajudar o Reich a ganhar a guerra? Se era um líder nacionalista na Ásia e os japoneses prometiam lutar contra o homem branco, devia confiar neles para promover a independência? Ou devia resistir? Ho Chi Minh achou que devia resistir. Sukarno que devia colaborar, e ainda hoje é um herói. Voltando à pergunta, no que diz respeito aos líderes, a Segunda Guerra Mundial deixou a sua marca. Por exemplo, o General de Gaulle concebeu a Constituição de 1958, que rege atualmente a França, para evitar uma catástrofe comparável à de 1940. Mas também há líderes que usam a memória da Segunda Guerra para fins contemporâneos. Para Putin, há um desejo de utilizar este argumento que é muito forte no povo soviético. Porque a guerra foi atroz na Europa Ocidental, mas foi abominável na Europa Oriental. Quando Putin diz que a Ucrânia precisa de ser desnazificada, está a explorar uma memória muito poderosa, ainda hoje presente na população russa. Mas é uma utilização cínica da história..No livro dedica um capítulo ao Holocausto, a criação do Estado de Israel é também consequência da Segunda Guerra Mundial.Sim, mas não do Holocausto, ao contrário do que muitas vezes se diz. Foi a União Soviética que apoiou a criação de Israel para embaraçar o poder britânico, que era o mandatário no Médio Oriente. Mas aquilo a que chamamos a criação de Israel é, em certa medida, anterior a isso. É o produto do sionismo do caso Dreyfus, da ideia de que o povo judeu, nunca estará a salvo do antissemitismo, por isso tem de ter um Estado. É o produto da Declaração Balfour de 1917, que previa a criação de um Estado para os judeus. A Segunda Guerra Mundial desempenhou um papel, mas não foi o único..No fim da Segunda Guerra Mundial foram criadas as Nações Unidas e um Conselho de Segurança em que os vencedores têm direito de veto. Num mundo hoje muito diferente do que tínhamos em 1945, é essencial adaptar o Conselho de Segurança para o tornar mais adequado à nova realidade?Sem dúvida. É evidente que o modo de governação da ONU não evoluiu. Surgiram novas potências importantes. A Índia. Ou a Alemanha. Portanto, deste ponto de vista, a forma como a ONU foi concebida deve ser revista..Os EUA saíram da Segunda Guerra Mundial como a grande potência, apesar da tensão com a URSS que produziu a Guerra Fria. Neste momento, a China está a tentar quebrar esse domínio. Mais uma vez, é uma reação à Segunda Guerra Mundial?A China sofreu muito mais na Segunda Guerra Mundial do que na Primeira com as ações do Japão. A China ficou devastada e essa memória ainda está muito fresca. Mas a posição da China é muito mais antiga, desde as Guerras do Ópio, em meados do século XIX. O que deu origem a um anti-ocidentalismo que está sempre presente porque o Ocidente só trouxe desolação à China. Apesar deste nacionalismo ferido, há que recordar que a China era uma potência imensa, nomeadamente no século XVIII. É uma civilização incrivelmente rica. A partir do século XIX, a China foi tratada como uma potência menor pelo Ocidente. No caso de Mao Tse-tung, por exemplo, o nacionalismo andou de mãos dadas com o comunismo, num contexto de antiocidentalismo..Por último, a Segunda Guerra Mundial mostrou a ascensão dos extremos. Estamos novamente a viver esse fenómeno?Não creio que seja comparável. Na Segunda Guerra Mundial houve mesmo extremos. Do ponto de vista militar, a guerra foi infinitamente mais violenta em 1945 do que em 1940. Estou a falar da selvajaria da campanha soviética na Alemanha, a batalha de Berlim foi sangrenta. Outro elemento foi a utilização de armas nucleares em duas ocasiões. Houve ainda uma radicalização das ocupações, que eram mais duras em 1944-1945 do que em 1940. O Japão, tal como a Alemanha, exigia cada vez mais dos países subjugados em termos de mão de obra, em termos económicos. Os regimes ditatoriais também se tornaram cada vez mais radicais. O Vichy de 1944 era mais sanguinário do que o Vichy de 1940. Estaremos hoje a assistir a um aumento dos extremos? Não me parece. Quando se olha para o conflito na Ucrânia, apesar do envio de tropas coreanas, não se tem a impressão de uma escalada. Pelo contrário. Vladimir Putin não atacou a Moldávia, não envolveu a Bielorrússia, não utilizou armas nucleares tácticas apesar da ameaça crescente de o fazer. Os aliados da Ucrânia, estão a tentar conter Zelensky quando este quer atacar território russo com armas ocidentais. Estamos a assistir a um desejo, por parte dos intervenientes, de se manterem dentro dos limites da situação porque esta subida aos extremos é assustadora. Na Segunda Guerra Mundial, a Alemanha de Hitler tinha de vencer ou morrer. Agora, não acho que Putin, por mais irracional que possa erradamente ser acusado de ser, considere a Ucrânia uma questão existencial. E não creio que se imaginar perder na Ucrânia, Putin ache que a Rússia e o seu regime desapareceriam.