"Quando estava a escalar o Evereste, pensava: é muito difícil. O que estou a fazer aqui? Vale a pena? Fazia-me muitas perguntas, e surgia sempre a mesma resposta: sim, vale, continua a subir. Na montanha, não há nada. Só pedra, gelo e neve. É frio, faz muito vento, é perigoso. Muitas pessoas usam a montanha para reivindicar um recorde, ganhar dinheiro ou ter um emprego. No meu caso, queria subir à montanha mais alta do mundo para passar uma mensagem: sensibilizar para a deficiência, porque desperdicei dois anos do meu tempo, perdido, em sofrimento. Quero consciencializar as pessoas com deficiência de que podem fazer algo. E esse algo pode ser extraordinário”. Hari Budha Magar contou-me a história da sua subida ao Evereste, há dois anos. Nesse 19 de maio de 2023 tornou-se o primeiro duplo amputado de pernas a atingir os 8849 metros da montanha nepalesa. Falámos por Zoom. Estava em casa, na Cantuária, regressado de uma viagem ao Canadá onde participou na Glex Summit. Foi Manuel Vaz, da portuguesa Expanding, parceira do Explorers Club de Nova Iorque, quem me falou da história do soldado gurkha do exército britânico, que ficou gravemente ferido ao pisar uma mina no Afeganistão, e que depois de um período mergulhado na depressão, cedendo ao álcool, iniciara um percurso de recuperação capaz de inspirar outros deficientes, na realidade todos nós. Foi emotiva a palestra de Hari em Otava, cidade que acolheu este ano a Glex, que já foi em Lisboa, em São Miguel e em Angra do Heroísmo. Vi-a em vídeo antes de iniciar esta conversa por Zoom. Impressionante.“Nasci num estábulo. A minha família estava sempre de um lado para o outro a levar os animais para as pastagens”, contou Hari. Foi uma infância dura, apesar da beleza dos picos nevados que cresceu a ver, um deles o Dhaulagari, com mais de 8000 metros. Ir à escola significou caminhadas a pé, descalço, e uma determinação de não desistir, mesmo quando chumbou, mesmo quando as aulas de inglês o assustavam. Aos 11 anos foi forçado a um casamento combinado. Em redor, a guerra civil entre o exército real e os rebeldes comunistas atraia muitos dos adolescentes daquelas aldeias do sopé dos Himalaias, e alguns eram amigos de Hari, de repente a disparar uns contra os outros. Mas uma oportunidade mudou-lhe a vida: o surgimento de um recrutador para os Royal Gurkha Rifles. “Em cada distrito do Nepal aparece um ou dois recrutadores. Vê se estamos bem fisicamente, se somos fortes. Conta quantas flexões conseguimos fazer. E olha para os registos escolares. Diz, ‘tu sim’, ‘tu não, desculpa’. E vai escolhendo. Depois novos testes. No país todo, foram 12.000 os candidatos. No fim, ficámos 230. Mas não são só os britânicos que recrutam gurkhas. Também há o nosso exército nacional. E a Índia. E Singapura. E o Sultanado do Brunei”, contou Hari, referindo-se às tropas nepalesas que ganharam fama de bravura ao serviço da Grã-Bretanha nas duas guerras mundiais. . Hari nasceu em 1979. Em 1999, após o tal processo de recrutamento ultra exigente, passou a integrar um regimento do exército britânico, uma mudança de 180 graus na vida. “Era uma maneira de ver o mundo”. Para o pai, foi um orgulho ver o filho entre os escolhidos. Era um desejo que tinha. O soldado gurkha aperfeiçoou o inglês. Casou outra vez, desta vez “por amor”. E teve uma filha e um filho. Em 2010, continuando a querer ver o mundo, foi enviado para o Afeganistão, onde uma força internacional apoiava a tentativa de reconstrução do país. “Estava lá há pouco mais de duas semanas. Eu deveria ficar lá seis meses e magoei-me muito rapidamente. E eu era o elemento mais antigo da minha equipa, e também era o segundo em comando. Estávamos na província de Helmand. Os talibãs estavam na região, mas, na altura, o nosso objetivo era construir estradas, escolas, ajudar o povo afegão. E nesse dia a nossa missão era levar dois engenheiros a inspecionar o antigo poço danificado. Outra missão era que tínhamos acabado de chegar ao novo local, por isso precisávamos de nos familiarizar com a área. Foi por isso que fomos com outra equipa que já lá estava, e eles levaram-nos a conhecer a região. E estávamos junto ao campo de papoilas e fomos por ali fora e sim, perdi as duas pernas”, relembrou Hari. Pisou uma mina artesanal. Um helicóptero veio resgatá-lo. Sobreviveu porque o apoio médico foi imediato. Hari foi hospitalizado. E levado para fora do Afeganistão. Iniciou-se um longo processo de recuperação, tanto física como mental. Hari admite que foi muito difícil. “Demorei quase dois anos para me assumir como deficiente. O motivo inicial foi que não tinha educação sobre a deficiência. Assim, não sabia o que fazer, porque quando vivia no Nepal via como as pessoas com deficiência eram tratadas pela família, quase escondidas. Talvez estivesse condenado a ser um fardo para a minha família. Talvez tenha feito algo errado na minha vida passada. Estes foram os meus pensamentos. E pensei que a minha vida tinha acabado e que ficaria sentado num canto da casa. Precisariam de cuidar de mim para o resto da minha vida. E eu ficaria sentado numa cadeira de rodas e seria um pobre coitado. Foi o que pensei. E tentei tirar a minha vida. A certa altura, bebia muito álcool só para controlar a dor e as emoções. E quando não bebia, as minhas mãos tremiam. E um dia bebi bastante e senti-me muito mal. Então, pensei: se continuar a beber desta maneira, vou morrer em breve. Se eu morrer, é o fim da minha história, certo? Acabou. Mas pensei que o meu legado negativo iria ser afetar a minha família. Um pai, que foi ferido no Afeganistão e que se matou. E eu não queria deixar esse legado à minha família, Então, simplesmente, decidi: Ok, vou viver a minha vida. E depois comecei a praticar desporto de aventura. E a primeira coisa que fiz foi paraquedismo. Para quem tinha pensado em matar-se, não havia razão para ter medo, pois não? Pensei que metade do meu corpo tinha já desaparecido. Se a outra metade desaparecesse, tudo bem”, contou Hari. A forma como relata a sua história de vida, mesmo os momentos mais difíceis, é calma, até com momentos de humor. Foi assim na Glex, foi assim durante a hora que estivemos à conversa, ele em Inglaterra, eu em Portugal. Pareceu-me mais difícil eu fazer algumas perguntas do que Hari responder. Quer que a sua história seja inspiradora para “os mil milhões de pessoas que no mundo sofre de algum tipo de deficiência”. . O salto de paraquedas, que nunca tinha aprendido a fazer mesmo quando estava no exército, foi o início de uma série de desafios: “Tinha agora um pouco de confiança. E talvez achasse que poderia fazer mais coisas. E, na altura, não sabia o quão importante é a mente, o quão poderosa é. Só pensava: o que poderia fazer depois de perder as duas pernas? Então, experimentei praticamente todos os desportos paralímpicos. E percebi que, na verdade, se pode fazer qualquer coisa. É apenas uma forma diferente de fazer as coisas. Um dia fui esquiar nos Alpes, noutra vez nas Montanhas Rochosas. Sentava-me e esquiava na cadeira. Eu costumava esquiar quando tinha pernas. E agora consigo fazer o mesmo, e até mais rápido do que antes. Divirto-me um pouco, então qual é a diferença? Comecei a andar de caiaque. Entro no caiaque e consigo fazer praticamente tudo. De repente, estava a andar de caiaque e era o melhor caiaquista no grupo, mesmo sendo duplo amputado. Percebi que, se conseguirmos adaptar a nossa vida de acordo com o tempo, a situação e a nossa capacidade, podemos realmente tornar tudo possível. É apenas uma forma diferente de fazer as coisas. Mas apesar de praticar muitos desportos, comecei a sentir que faltava alguma coisa. Sim, já fiz isto, já fiz aquilo, já fiz praticamente tudo. E sempre que viajava pelo mundo, sempre que via as montanhas cobertas de neve, pensava no Evereste. Porque desde muito pequenos, na escola primária, ensinam-nos que o Monte Evereste é o pico mais alto do mundo. Fica no Nepal. Nós, nepaleses, consideramo-lo o nosso orgulho e identidade. Tinha que escalá-lo. Subir ao topo do Evereste passou a ser um objetivo.”O entusiasmo de Hari, a sua história de vida, cativa muita gente. E os patrocinadores foram aparecendo, o que no caso da conquista do Evereste é decisivo, pois é uma missão muito cara. O que o antigo soldado não esperava é que, mesmo depois de garantidos os financiamentos para a ascensão, surgisse um obstáculo legal. O Nepal tinha aprovado uma lei a proibir a escalada a duplos amputados e a deficientes visuais. Foi preciso o antigo soldado gurkha ir até ao Supremo Tribunal, apoiado por advogados, para ser autorizado a realizar um sonho que vinha desde criança, quando olhava para as fotografias a preto e branca da mítica escalada em 1953 do neozelandês Edmund Hillary e do nepalês Tenzing Norgay, os primeiros a atingir o cume do Everest. Desde então foram mais de 7000 pessoas a chegar ao topo, algumas múltiplas vezes, sobretudo sherpas como Norgay. Há mesmo um nepalês, Kami Rita, que já subiu 31 vezes, a mais recente em maio deste ano. Mas o único duplo amputado de pernas na lista dos conquistadores do Evereste é Hari e o feito está registado no livro de recordes Guinness. Foi também condecorado pela casa real inglesa no ano passado e, disse-me, “recebi há poucos dias um doutoramento honorífico”. Atribuído pela Universidade de Cantuária.“Eu queria escalar o Evereste. Foi por isso que pus em prática a minha expedição. Eu queria escalá-lo quando era criança. Eu queria escalá-lo quando estava no exército. Mas não consegui. E depois de perder as pernas estava a pensar: como é que vou fazer isto sem pernas? E era nisso que eu estava a pensar, sabe, na evolução humana.. Há tantas coisas impossíveis que nós, humanos, tornamos possíveis. Portanto, o problema é que não conseguimos correr rápido o suficiente para explorar o mundo. Então, o que fazemos? Concebemos coisas que nos podem levar mais rapidamente pela terra, pelo mar, pelo ar. Até podemos alcançar outros planetas. Somos humanos, desafiamo-nos e tornamos isso possível. Então, simplesmente eu, sem pernas, estar no topo do Evereste deveria ser possível. sempre acreditei. E é por isso que um dia fui ao Nepal, testei-me e, disse, vou escalar o Evereste. E depois disso, não houve volta a dar. Uma vez dito, tem de cumprir o que disse. Temos de ser responsável pelas nossas ações e palavras. E cumpri a minha palavra. Foi duro. Vi muita gente com as duas pernas desistir. Mas eu já tinha escalado outras montanhas. Sei que é uma longa e torturante viagem. E no final estamos lá. No Evereste, quando fui além do Passo de Hillary, senti que ia conseguir. Cada passo foi difícil para mim. Não havia pernas protéticas pensadas para os amputados duplos acima do joelho escalarem no gelo e na neve. Assim, concebemos pernas protéticas especiais nos Estados Unidos. Com elas, e com muita força de vontade, tive sucesso. Espero inspirar outros a serem capazes de sonhar”. O lema de Hari é “sem pernas e sem limites”, e foi com ele que impressionou os membros do Explorers Club, sendo que uns são astronautas, outros mergulham a profundidades incríveis, alguns exploradores dos polos e também há escaladores de montanhas. Hillary, o conquistador do Evereste, foi presidente honorário do Explorers até à sua morte e há na sede do clube, que visitei um dia guiado pelo astronauta Richard Garriot, uma sala com objetos que pertenceram ao neozelandês.Hari subiu já em 2025 o Aconcágua, na Argentina, com 6961 metros, e em 2024 escalou o Denali, no Alasca, com 6190 metros, sendo o seu objetivo conquistar as montanhas mais altas dos chamados sete continentes. Com o Monte Branco, na Europa, e o Kilimanjaro, em África, já no currículo, além do Evereste, o mais alto da Ásia e do mundo, quando conversámos só faltavam duas: o Puncak Jaya, na Oceania, e o Monte Vinson, na Antártida. No sábado, ficou a faltar uma. Hari colocou no Instagram uma foto no topo do Puncak Jaya.É toda uma história de coragem que enche de orgulho os filhos, que agora são três, pois tem mais um rapaz. “Sem pernas, sem limites”, relembrou-me, mesmo no final da conversa. Logo depois de ter brincado a dizer que “agora até sou mais alto do que era antes. As próteses podem ser reguladas uns centímetros a mais ou a menos”. Admirável este Hari Budha Magar. .GLEX estreia-se no Canadá e vai ter também expedição à Antártida com equipa portuguesa.Kimberly Kivvaq Pikok - A esquimó que a Glex trouxe aos Açores para contar o degelo no Alasca .Glex Summit: em busca de Cleópatra e da Lua