Kimberly Kivvaq Pikok - A esquimó que a Glex trouxe aos Açores para contar o degelo no Alasca 

Bióloga e pescadora da etnia inupiaq, Kimberly Kivvaq Pikok vive na cidade mais a norte no Alasca e é testemunha de como o aquecimento global está a afetar o comportamento de baleias e focas.
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Confessa que nunca tinha viajado antes para fora dos Estados Unidos e diz, a rir, que até perdeu a conta às mudanças de avião que fez para chegar à Ilha Terceira, para participar na GlexSummit 2023 que se realizou em Angra do Heroísmo. Mas Kimberly Kivvaq Pikok, uma pescadora e bióloga da etnia inupiaq, encara como uma missão contar ao mundo o que se passa no Alasca, sobretudo o degelo do mar que se observa da sua cidade, Utqiagvik, a mais a norte dos Estados Unidos e uma das mais a norte do mundo, somente a 2000 quilómetros do Polo Norte. Curiosamente, a jovem de 25 anos evita um discurso catastrofista sobre o aquecimento global, mesmo para os povos inuíte, a que tradicionalmente chamamos de esquimós: "É um facto verdadeiramente importante para a nossa comunidade, porque todos os anos vemos diferentes tipos de mudanças no gelo do mar, na terra e no comportamento dos animais. Nestes últimos anos, por exemplo, a temporada das baleias começa mais cedo, termina em meados de maio, aí o gelo fica em muito más condições, mas isso significa que começa a da caça às focas. Penso que iremos encontrar diferentes maneiras de nos adaptarmos a estas mudanças. Já deixámos de pensar nas alterações climáticas numa perspetiva negativa, mas sim na forma como nos podemos adaptar a elas". E sublinha que quem ultrapassar o Círculo Polar Ártico e visitar Utqiagvik e outras localidades onde vivem comunidades inuíte "verá como o instinto de sobrevivência faz as pessoas adaptarem-se ao máximo às alterações ambientais."

Instinto de sobrevivência é algo que o povo inupiaq tem demonstrado nos últimos dois séculos, desde que viu chegarem à sua região britânicos, russos e finalmente americanos, pois em 1867 os Estados Unidos compraram o Alasca ao czar.

Algumas medidas simbólicas recentes, como a cidade ter trocado o nome de Barrow, de uma figura da Marinha Britânica, pelo tradicional Utqiagvik, não escondem que há uma americanização acelerada dos seus cinco mil habitantes, provavelmente mesmo dos outros 15 mil inupiaq que vivem em aldeias espalhadas pela costa norte do Alasca.

"Ainda temos muitas das nossas tradições, como o Festival da Baleia, que acontece na terra de onde sou originária. A nossa comunidade vive perto de Point Hope, o cabo mais setentrional, e é a mais tradicional da minha região. Penso que por vezes modernizamo-nos, como, por exemplo, na alimentação. Hoje em dia comemos kimchi [risos] como se fôssemos coreanos. Acho que a modernização nos dá novas perspetivas em relação à nossa maneira de pensar, à nossa mentalidade", explica Pikok, que estudou Biologia na Universidade de Fairbanks, uma das maiores cidades do Alasca, um estado que é o maior dos EUA e tão grande como umas 20 vezes Portugal.

A conversa é em inglês, e Pikok admite que toda a sua educação foi feita nessa língua, apesar de ainda saber algumas palavras do idioma do seu povo. "As crianças começaram a aprender inglês e as famílias também incentivavam pois era a forma de se integrarem na sociedade. Hoje existe um esforço para revitalizar a nossa língua, para que nós a possamos aprender dos poucos falantes que já temos", conta. Serão só duas mil pessoas, e em geral idosas, que falam ainda inupiaq. "À maioria dos jovens acontece o mesmo que a mim. Conseguimos compreender algumas frases, mas não somos capazes de responder na nossa própria língua. Foram as pessoas da idade dos meus pais que começaram a aprender inglês para irem à escola", acrescenta, numa conversa no Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, depois da palestra que encheu o auditório onde decorreu, em junho, a GlexSummit, organizada pela Expanding ,do português Manuel Vaz, e o Explorers Club de Nova Iorque.

Pikok foi a primeira da família a estudar na universidade e diz que sempre sentiu incentivo para aprender mais e ajudar a dar a conhecer as preocupações do seu povo: "A minha comunidade no Alasca apoiou a minha ida para a universidade. O facto de termos uma Educação Superior significa que iremos voltar e apoiar a comunidade, que poderemos vir a ser líderes dessa mesma comunidade."

As religiões tradicionais dos inuíte convivem hoje com os monoteísmos trazidos desde o século XIX pelos colonizadores vários, e, como diz a bióloga, "temos todo o tipo de religiões na nossa comunidade atualmente. Temos a Igreja Católica, a Presbiteriana, Mórmon, etc.". A cultura popular americana também está presente na antiga Barrow - e Pikok usou várias vezes este nome para referir a sua cidade -, onde existem campos de basquetebol e de futebol. Pergunto se também há McDonald"s? "Nós não temos nenhum restaurante de comida rápida em Barrow, mas o que fazemos é de regresso de viagem ir, por exemplo, ao Aeroporto de Anchorage onde existe um McDonald"s. Aí vemos muitas pessoas da comunidade a pedir um Big Mac e a levá-lo para casa", responde Pikok, novamente entre risos, acrescentando que "somos tão americanos que nos dividimos em republicanos e democratas como o resto do país". O seu sorriso conquistou-lhe simpatias nos três dias da GlexxSummit e foi curioso ver como era acarinhada pelos cientistas, alguns da NASA.

Com um ritmo de aquecimento anual que os cientistas dizem ser duas vezes mais rápido do que a média dos Estados Unidos, o Alasca está no centro das atenções também pelo debate entre os ambientalistas e os que consideram que o degelo traz oportunidades económicas, como alargar a exploração petrolífera. "Há sempre muita gente que quer proteger a terra à nossa volta. Existe também uma divisão entre os que são pró-petróleo e aqueles que querem proteger o ambiente. O que eu descobri é que, independentemente da posição de cada um, há sempre maneira de defender a opção escolhida: os que são pró-petróleo defendem que isso significa que o nosso povo tem mais dinheiro para comprar comida, e os que são pró-ambiente defendem que isso significa ter mais comida para toda a comunidade e ser capaz de praticar a caça tradicional... todos acham que estão a servir a comunidade da melhor maneira", responde a bióloga, procurando não tomar partido, pois sabe que sendo uma voz pública o que diz pode ser confundido com posição coletiva.

"Espero aprender muito mais. Ainda sou muito nova na minha carreira académica, ainda sou estudante de mestrado. Espero apenas estar a representar bem a minha comunidade enquanto estou tão longe de casa. E esta é a minha primeira vez no estrangeiro", diz. Confessa estar maravilhada com os Açores. E até diz ver semelhanças com Utqiagvik: "Ainda ontem estava a pensar sobre isso. Andei ao longo da costa e verifiquei que o tempo instável é parecido com o da minha região, um dia está enevoado e chuvoso, no dia seguinte faz sol... Consigo identificar-me muito com este clima instável. A única diferença é que aqui é bastante quente e lá é bastante frio!"

DN viajou a convite da GlexSummit

leonidio.ferreira@dn.pt

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