O conflito na Ucrânia marcou o regresso da guerra às fronteiras da Europa. Isso alterou as prioridades do exército francês?Alterou enormemente as prioridades do exército francês, mas trata-se de um processo contínuo. No início da década de 2000, a questão era mais o terrorismo e o arco de crises. Depois, houve as questões das alterações climáticas e os danos que estas poderiam causar às sociedades. Nos últimos dez ou quinze anos, houve um regresso ao tema da competição e do confronto entre potências. E a Ucrânia é o símbolo perfeito destas mudanças, o que significa que, para nós, o paradigma dominante é agora o regresso ao confronto de potências.Neste momento, a Rússia é a maior ameaça na Europa?É óbvio que a NATO e os europeus a consideram hoje como tal. O foco está totalmente centrado na Rússia, porque estamos a falar da segurança da Europa. Mas a Rússia é a força motriz por detrás de uma rede de países autocráticos e autoritários que estão a tentar desafiar a ordem internacional estabelecida desde 1945. E estão dispostos a usar a força para o fazer, o que constitui uma verdadeira rutura com o passado.O que antes era uma ameaça latente, agora pode acontecer a qualquer momento?Essa é, mais uma vez, a grande mudança. Nos últimos 10 ou 15 anos assistimos ao aparecimento das questões da guerra híbrida, da zona cinzenta, onde já não estamos numa situação de concorrência. Hoje dizemos que, na caraterística das relações entre potências, estamos numa dialética de competição-contestação-confrontação. Encontramos o mesmo vocabulário no conceito político da NATO Defesa e Dissuasão do Espaço Euro-Atlântico. Estamos, portanto, alinhados na Europa relativamente a estas questões. Durante muito tempo, pensámos que estávamos em concorrência. E depois apercebemo-nos de que, no confronto, estávamos a entrar na zona cinzenta híbrida. A questão atual é que, embora ainda não seja real, passámos a um confronto que envolve o uso da força enquanto tal, a violência no sentido clássico do termo, ou seja, das forças armadas, para obter vantagens. Hoje, o tema principal no pensamento do exército francês é ganhar a guerra antes da guerra. Todas as nossas posições militares atuais garantem que, para quaisquer países que possam ser tentados a pensar que o confronto é uma opção, nós os dissuadimos completamente. Ou seja, através do regresso do nosso próprio poder e da expressão da nossa vontade, devemos deixar perfeitamente claro que não há esperança em qualquer tentativa de escalada contra nós.O seu papel como Comandante das forças terrestres para a Europa é permitir que o exército francês reaja mais rapidamente em caso de crise. Como é que essa reação é preparada?De várias formas. Há dois anos, a França criou um Comando Terrestre da Europa. Como disse, o objetivo principal era ter um comando operacional capaz de lidar, no dia a dia, com todos os Estados-Maiores da NATO ao mesmo nível. Até agora, não precisávamos de ter este nível de interação porque a probabilidade de uma crise era extremamente remota. E, se surgisse, teríamos tempo para nos organizarmos. Hoje, porém, precisamos de estar totalmente preparados. O objetivo número um é trabalhar de forma muito mais extensiva em todas as questões de planeamento. Inclusive com os países da linha da frente para preparar as nossas tropas, treinar em cenários reais e ser capaz de o fazer numa base diária nesta fase de dissuasão, e ser capaz de apoiar melhor um esforço para, se necessário, reforçar a presença francesa no terreno, na Europa. Há muito trabalho a fazer, que não pode ser feito apenas a partir de um Estado-Maior estratégico que, para nós, está em Paris, como, para vós, está em LisboaO mais difícil é essa interação, estar preparado, e não ter 32 exércitos prontos, mas sem estarem interligados?Isso é absolutamente crucial. A credibilidade militar depende de um grande planeamento a montante. Na Europa, precisávamos de o fazer, tanto mais que, nos últimos 30 anos, reduzimos significativamente um certo número de posições. Por exemplo, há 30 ou 40 anos, o envio de tropas através da Europa era uma ocorrência quotidiana para os exércitos ocidentais, mas parava na fronteira alemã. Não fizemos esse esforço na Europa de Leste. Antes, fazíamos muitos exercícios de interoperabilidade, principalmente para fins políticos, para dar uma mensagem de coesão. Hoje, é preciso treinar com as tropas, com os Estados-Maiores, com os aliados com os quais se vai estar no terreno se for necessário implementar os planos da Aliança. Há, portanto, uma mudança significativa na forma como lidamos com as questões europeias.Fala-se cada vez mais da Europa da Defesa, esse é o caminho? E como é que é compatível com a NATO, que tem uma estrutura de comando centralizada, enquanto a UE são 27 exércitos individuais?Muitas vezes tendemos a ver a NATO através do prisma da relação com os Estados Unidos. Esta é uma parte importante do tema, porque em 1949 os membros fundadores, incluindo Portugal e França, criaram a Organização do Tratado do Atlântico Norte precisamente para manter os EUA a bordo e evitar o que aconteceu no final da Primeira Guerra Mundial, quando, depois de apoiarem a Sociedade das Nações, os americanos não aderiram. A NATO é isso. É um desejo partilhado de estar presente nas grandes questões. A NATO reúne agora a grande maioria dos países europeus, e a defesa militar quotidiana da Europa é tratada através da NATO. A NATO começou por ser uma aliança política. Mas é a aliança atlântica que criou uma organização militar de defesa. Por outras palavras, a NATO está altamente otimizada com base nos efetivos militares. Toda a estrutura foi concebida para a ação militar. A UE não nasceu de considerações militares. Trata-se de uma cooperação entre países europeus, muito mais, à partida, para fins económicos, políticos e sociais. Por isso, dizer que, de um lado, existe uma cadeia de comando e, do outro não, é óbvio. O debate que poderá surgir é como fazer evoluir estas estruturas de comando de modo a que a parte europeia acabe por ter mais responsabilidades. Pessoalmente, não vejo qualquer oposição entre as duas. Compreendo que a principal questão que se coloca hoje, na sequência de uma série de discursos proferidos nos EUA, é dizer aos europeus que assumam mais responsabilidades. A França não tem qualquer problema com isso. A nossa mensagem histórica sobre questões de defesa é a de que, no Atlântico Norte, há uma aliança, que é muito importante, mas também é muito importante que cada um faça a sua parte e os europeus têm de fazer muito mais. Aqui surge o debate sobre a defesa e as percentagens de gastos em defesa. Historicamente, os americanos gastam muito mais do que nós. Há uma necessidade real de aumentar as nossas despesas e de desenvolver as nossas capacidades. É necessário reforçar o pilar europeu na NATO. É assim que os europeus assumem mais responsabilidades na NATO no dia a dia. Depois, há os desenvolvimentos de capacidades. Continuo a pensar que o objetivo será desenvolver, principalmente com base na indústria europeia, as cadeias de produção industrial, a racionalização do equipamento para garantir a capacidade dos europeus de enfrentarem um conflito, caso este venha a surgir.Neste momento, os europeus têm de comprar grande parte do equipamento militar aos EUA, isso não será uma boa solução…Há aqui duas questões. Hoje muitos dizem que, quando se depende de outros, nunca se pode ter a certeza de que os recursos nos serão atribuídos. Ora uma parte do discurso americano hoje baseia-se no facto de eles acreditarem que têm potencialmente prioridades mais importantes e que, se tiverem de lidar com outros conflitos, não terão os meios para fazer o que pensavam fazer historicamente na Europa. Daí que a necessidade de reconstruir uma indústria europeia capaz de garantir a nossa defesa é absolutamente essencial.Falando dos EUA, o presidente Donald Trump já deixou claro que o objetivo de 2% de gastos em defesa dos países da NATO já não basta e aponta para 5%. França gasta 2,1%, mas alguns países da Aliança, como Portugal, nem aos 2% chegam. 5% é um objetivo alcançável?Esse não é um assunto da minha competência. Mas o que posso dizer é que o debate foi aberto em França. É um dos temas que será abordado na Cimeira da NATO em Haia. A questão principal é que tivemos um debate sobre os 2%, não há muito tempo na NATO. Penso que, atualmente, a maior parte dos países europeus estão em vias de chegar a acordo sobre os 2%. Quanto à meta de 3,5% será um objetivo adicional que levará algum tempo, dependendo do equilíbrio político em cada país e também do seu desempenho em termos de segurança. Porque alguns países sentem que a sua segurança está mais em risco do que outros. E podemos imaginar que as reações políticas não serão exatamente as mesmas. O que é importante neste debate é a quantidade, mas penso que na Europa há também uma questão de qualidade da despesa. É preciso ter cadeias industriais que nos permitam produzir mais por menos, porque, atualmente cada país europeu compra pequenas quantidades. Logo paga muito mais por cada exemplar. É evidente que hoje precisamos de unidades de produção. E há a questão das compras em conjunto. Mais uma vez, penso que estes são debates reais. .Atualmente, a única força de dissuasão totalmente independente na Europa é a francesa. Mais de meio século depois, a França e a Europa estão a dar razão ao General de Gaulle e ao seu desejo de não depender de ninguém?A dissuasão francesa é o resultado de uma história política. Em determinado momento, percebemos que nunca estamos melhor defendidos do que por nós próprios. Mas, ao mesmo tempo, há uma necessidade efetiva de alianças. As pessoas que criaram a força de dissuasão francesa durante a IV República, nos anos 50, são as mesmas que patrocinaram o surgimento da NATO para se associarem aos americanos na defesa do continente. Estes dois aspectos funcionaram. O regresso da competição entre potências mostra que tínhamos toda a razão em sermos autónomos nestas questões - e ter um controlo total da cadeia de ponta a ponta, em todos os seus componentes. Esta é uma questão nacional francesa. E o tema da aliança e a forma como trabalhamos coletivamente para nos defendermos melhor é outro tema. Os dois apoiam-se mutuamente. Há uma altura em que é esta capacidade que dá credibilidade à dissuasão. Se tivermos dissuasão e não tivermos indústria de defesa nem tropas, não temos hipótese de dissuadir ninguém.Essa dissuasão tem também uma componente nuclear. Perante o risco atual de perder o guarda-chuva nuclear americano, a Europa está ainda mais dependente da proteção francesa? E será esta suficiente?É uma questão eminentemente política, que releva em França do domínio reservado ao presidente da República. Podemos ver que o presidente Macron abriu debates com os países europeus e penso que estes são temas que vão obviamente ser cada vez mais debatidos a nível político. Já existe uma questão de partilha de estratégia, de visão estratégica e de cultura. A dissuasão nuclear é uma dialética muito específica. Não há dúvida de que hoje existe uma necessidade real de todos os países europeus se apropriarem das questões da dialética nuclear, que hoje, no seio da NATO, foram em grande medida subcontratadas aos americanos.Em fevereiro, França e Portugal assinaram um tratado de cooperação em vários sectores, incluindo o da defesa. Como é que vê esta cooperação entre os dois países?Há muitos pontos a favor de um reforço efetivo da cooperação entre a França e Portugal. Em primeiro lugar, o que é muito importante é o facto de partilharmos uma visão política bastante clara sobre as grandes questões. É verdade para a orientação atlântica, para a orientação europeia, para uma abertura ao mundo e aos desafios do Sul. Na nossa forma de atuar, sentimo-nos naturalmente próximos do exército português. Hoje em dia, os desafios que temos pela frente - os desafios mediterrânicos, do desenvolvimento da defesa europeia, da proteção do continente, desafios marítimos - fazem com que haja muitas razões para trabalharmos mais em conjunto. No âmbito desse acordo, há um compromisso por parte de França de adquirir drones portugueses e de Portugal em adquirir 36 canhões Caesar. Qual a importância deste intercâmbio?Penso que este é o exemplo de uma cooperação prática. O Caesar faz parte da transformação do exército português. Não tenho dúvidas de que a aplicação e o impacto a nível interno da força terrestre portuguesa serão significativos. Através de cooperações como o César, podemos ter intercâmbios humanos, de formação para pessoas que queiram treinar em França, equipas que venham de França para ajudar a construir unidades portuguesas. Assim cria-se o elo humano que significa que em todas as crises ou operações dos próximos 20 anos, temos pessoas que se conhecem pessoalmente. Isso é um verdadeiro fator de mudança. E, por detrás disso, temos um impacto em questões operacionais reais, desde cargas em profundidade, ataques de longo alcance ligados à nova transparência do campo de batalha, etc., É uma parte considerável da transformação dos exércitos terrestres em toda a Europa. Nos últimos anos, estávamos muito concentrados no combate de proximidade. Quando se luta contra grupos terroristas, é uma questão de combate de proximidade, forças especiais, comandos, etc. Em grandes batalhas de alta intensidade, os exércitos ocidentais como o nosso estão numa posição em que precisam de ter destruído 70% da força adversária antes de entrarem em contacto. Faz-se isso com cargas de longa distância. Assim, a cooperação com o exército português faz-se naquilo que é provavelmente a questão-chave na transformação dos exércitos europeus atuais, que é a nova forma de fazer a guerra à distância. É evidente que há muito a ganhar coletivamente.Todos os dias ouvimos falar em ataques com drones, por exemplo, na Ucrânia. Os drones estão a desempenhar um papel cada vez mais importante?Os drones são outra dimensão. No que se refere à guerra na Ucrânia, vejo três tópicos principais relacionados com a transformação dos exércitos terrestres. A primeira lição a tirar é a transformação completa das nossas ferramentas militares em torno da exploração de dados. Isto está a mudar radicalmente a forma como fazemos as coisas, porque graças a sistemas cada vez mais inteligentes e ágeis é possível processar qualquer informação obtida no terreno em alguns minutos ou mesmo segundos. A revolução dos data está a transformar todos os exércitos. A segunda questão é a transição de forças que estavam concentradas em situações de contacto para forças que focadas na transparência do campo de batalha e em ataques em profundidade. Em França, foi criado um comando para tratar de todas as operações à distância. O seu campo de ação é de 50 km a 500 km à frente do exército francês. A terceira revolução são os drones e a robotização em geral. Os drones desempenham um papel em todas as zonas do campo de batalha. Atualmente, há locais na Ucrânia onde unidades que controlam umas dezenas de quilómetros de linha da frente, conseguem manter até 3000 drones no ar em permanência. A forma como se faz a guerra e a exposição dos soldados muda radicalmente. Mas os drones têm um impacto muito mais alargado. Atualmente os ucranianos conseguem atacar até à fronteira russa, têm conseguido atacar com drones marítimos até aos portos de guerra de Sebastopol e mais além. Esta é outra dimensão que irá mudar a face do campo de batalha para as forças terrestres. Se olharmos para os conflitos dos últimos dez anos, trata-se de um aumento de poder. Mas enquanto comandante das forças terrestres francesas, não vou passar para um exército só de drones. Porque no dia em que tivermos um escudo capaz de parar os drones, não nos restaria nada. Este é um dos desafios, tanto em termos de capacidades como de recursos humanos, da transformação das atuais forças terrestres - como é que se mergulha neste novo mundo de dados, drones e ataques em profundidade mas ao mesmo tempo, se não continuarmos a ter soldados com força moral poderosa, capazes de permanecer nas trincheiras, capazes de se exporem, de manter o terreno, um dia podemos estar numa situação delicada. Após mais de três anos de guerra na Ucrânia, a Rússia ganhou um treino e uma capacidade de combate que não teria antes. Isso deve preocupar a Europa?Não há dúvida de que há adaptações consideráveis que nos países en guerra, até por uma questão existencial. A guerra mostrou como o processo de adaptação dos conhecimentos táticos e das técnicas evoluem muito rapidamente na frente ucraniana. Os ucranianos estão a tirar proveito disso e podemos ver o que têm conseguido fazer aos russos. Por outro lado, o exército russo também se está a adaptar. E, de certa forma, sairá reforçado com o que aprendeu na Ucrânia. Mas podemos virar os argumentos ao contrário. Há três anos que vemos diariamente o exército russo à nossa frente. Mostraram-nos tudo. Se tivéssemos de atuar contra eles hoje, temos muito mais informações do que tínhamos antes do conflito. Temos uma avaliação real do que eles conseguem e não conseguem fazer. Hoje em dia isso é mais um trunfo.Veio a Lisboa para o exercício ORION 25, que reúne tropas portuguesas, francesas, espanholas, italianas e romenas. Qual a importância de um exercício como este?De um modo geral, temos de estar muito mais preparados hoje do que antes. Isto aplica-se a cada um dos nossos exércitos. É verdade para o que fazemos na UE, é verdade para o que fazemos no âmbito da NATO. Este exercício está ligado à crescente capacidade de reação da UE. Estamos a falar de uma Capacidade de Destacamento Rápido, que é uma das consequências da bússola estratégica da UE, equipando-se com uma capacidade de reação imediata a crises, muito mais rápida e integrada. Hoje temos um Estado-Maior capaz de comandar até dois Battlegroups no terreno. E, pela primeira vez, Portugal assumiu a responsabilidade de um Battlegroup. O que, na minha opinião, é uma verdadeira responsabilidade. E o que é interessante é que, depois de Portugal, a Espanha, a Itália e a França assumirão, à vez, estas responsabilidades. Por isso, penso que é uma excelente demonstração do que somos capazes de fazer sob um mandato da UE. Este exercício reúne países que têm muito em comum em termos das suas opções estratégicas, mesmo se a Roménia se concentra sobretudo nos assuntos relativos à Europa de Leste. Ficámos muito satisfeitos por participar na aventura portuguesa. E imagino que, dentro de alguns anos, os portugueses estarão a participar na aventura francesa em torno do EU Battlegroup. .Estratégia de sanções contra a Rússia abre brecha entre EUA e Europa