Os vinte anos que separam Tim Walz e J.D. Vance são apenas uma das diferenças fundamentais entre os dois candidatos a vice-presidente dos Estados Unidos. O contraste será visto hoje em Nova Iorque, quando o democrata do Minnesota e o republicano do Ohio se encontrarem para um frente a frente vice-presidencial moderado pela CBS News. .Tipicamente, debates entre candidatos a número dois não movem as sondagens nem influenciam a escolha dos eleitores quanto ao presidente. Mas estas não são eleições típicas e há nuances na forma como o encontro entre Walz e Vance está a ser encarado. É o que explica ao DN o maior especialista académico na vice-presidência norte-americana, Joel K. Goldstein, que é professor na Faculdade de Direito da Universidade de Saint Louis e escreveu vários livros sobre o cargo. .“Há alguns fatores que podem tornar este debate um pouco diferente”, afirmou o especialista. “É o último debate agendado. Habitualmente, o debate dos vices está no meio de debates presidenciais e é ofuscado por isso.” Desta vez, é a última oportunidade de ver os dois lados debater e isso pode atrair mais atenção para o encontro. .“Uma segunda razão é que Trump é o candidato mais velho nomeado por um grande partido, e isso levanta maiores questões sobre a preparação ou não do seu vice para estar a uma batida cardíaca da presidência desde o primeiro dia”, salientou. “Penso que haverá mais interesse por esse ângulo”..Tanto o senador Vance como o governador Walz são recém-chegados ao palco nacional, o que significa que as suas capacidades e competências são relativamente desconhecidas. É isso que estará em causa neste debate..“Vi sondagens em que cerca de 30% das pessoas não têm opinião sobre eles”, referiu Goldstein. “O debate é importante para cada um deles no sentido de estabelecerem uma identidade pública.” Não só é um dos momentos mais visíveis da campanha, como tem um certo “drama” no frente a frente e vai chegar a muita gente, mesmo que em pequenos clips no dia seguinte..“Tem o potencial de modelar a forma como alguns segmentos do eleitorado percebem os candidatos presidenciais e os seus programas”, considerou Goldstein. Isto porque estes debates costumam focar-se mais nos candidatos a presidente que nos candidatos que estão ali a falar ao vivo..“São os candidatos a vice que estão em palco, mas na maior parte do tempo falam sobre os candidatos presidenciais e os seus programas. Se conseguirem comunicar de forma eficaz e persuasiva para um segmento de eleitores em estados críticos, pode fazer a diferença”, indicou o professor. Mesmo que os números sejam pequenos. .Debates que ficaram na memória.Embora o consenso diga que embates de candidatos a número dois não fazem mexer as sondagens, o passado mostra que podem lançar ou quebrar carreiras políticas. .O exemplo clássico que continua a ser revisto até hoje é o debate entre o democrata Lloyd Bentsen e o republicano Dan Quayle a 5 de outubro de 1988. O jovem Quayle defendeu o seu histórico dizendo que tinha mais ou menos a mesma experiência que John F. Kennedy quando este se candidatou à presidência, o que não era verdade. Em resposta, o veterano Bentsen entregou uma das alfinetadas políticas mais memoráveis das campanhas norte-americanas: “Jack Kennedy era meu amigo”, disse, com ar condescendente. “Senador, você não é nenhum Jack Kennedy.” .O momento tornou-se icónico. Não teve impacto na eleição – Dan Quayle veio mesmo a ser vice-presidente na administração de George H. W. Bush. Mas quando tentou a sua sorte na corrida à Casa Branca, anos mais tarde, conseguiu apenas uma mão cheia de votos. A sua carreira nunca recuperou. .Uma década antes, o debate entre o republicano Bob Dole e o democrata Walter Mondale tinha mostrado como a qualidade do desempenho podia ajudar os candidatos presidenciais. A prestação de Mondale foi tão boa que o então candidato presidencial Jimmy Carter passou o resto da campanha a gabar-se da sua escolha. “É possível que esse debate tenha contribuído para o resultado da corrida presidencial em 1976”, arriscou Joel K. Goldstein. .Vinte anos depois, em 1996, os republicanos criticaram Jack Kemp por ter sido pouco agressivo para a administração Clinton no debate com Al Gore. Em 2000 foi o oposto: os democratas ficaram desapontados com Joe Lieberman por não ter atacado o então governador do Texas George W. Bush o suficiente no debate contra Dick Cheney..Na história mais recente, os debates de Joe Biden como vice-presidente ajudaram as campanhas de Barack Obama. O frente a frente com Sarah Palin bateu o recorde e atraiu 70 milhões de espectadores, tendo tido maior audiência que o debate presidencial. E contra Paul Ryan, Biden chamou as propostas dos republicanos “malarkey”, o que pode ser traduzido como tolice ou baboseira, de uma forma tão incisiva que revigorou a campanha democrata. .Os temas em cima da mesa em 2024.A eleição de 5 de novembro é um ‘animal’ diferente e os candidatos a vice-presidente têm objetivos muito distintos. Para Tim Walz, a tarefa é completar o que começou quando chamou aos republicanos “esquisitos”, mostrando que tanto Trump como Vance têm ideias bizarras – como a fixação nos migrantes haitianos no Ohio, que acusam de comer cães e gatos – mas a sua agenda é perigosa. .“Se Vance passar meia hora a falar de haitianos a comer animais de estimação, isso pode prejudicá-los”, explicou ao DN o professor Thomas Holyoke, da Universidade Estadual da Califórnia, em Fresno. “Porque é muito ridículo. Trump está a começar a perder algum terreno, em parte, porque só está focado em coisas loucas.” .A lógica de Vance é ligar a história dos haitianos em Springfield, Ohio, ao problema mais alargado da imigração, um dos pontos fracos da campanha de Kamala Harris – que esteve na fronteira com o Arizona na sexta-feira para lidar com o problema de frente. A missão de Walz será dar respaldo à candidata democrata, possivelmente falando no pacote bipartidário aprovado no Senado que afundou a pedido de Donald Trump. .Walz deverá também focar a discussão no aborto e direitos reprodutivos, contrastando com as posições controversas de J.D. Vance, que critica mulheres solteiras e defendeu menos direitos para os eleitores sem filhos. O republicano, pelo seu lado, deverá atacar Harris-Walz pelo estado da economia, colando a candidata à elevada inflação e políticas da administração Biden que considera serem prejudiciais para os negócios. .É possível que ambos divirjam fortemente também na política externa, já que os democratas defendem a continuidade dos apoios financeiros e militares à Ucrânia e os republicanos querem fechar a torneira..Além da substância, haverá atenção redobrada à forma. Depois de Kamala Harris ter conseguido que Donald Trump caísse em todas as suas armadilhas, caberá a J.D. Vance mostrar uma plataforma republicana mais disciplinada, focada nos assuntos que interessam aos eleitores. .“Uma das razões pelas quais muita gente está interessada neste debate é que há um sentido de que, quando Donald Trump sair do palco nacional, J.D. Vance será o herdeiro aparente do movimento MAGA”, explicou Thomas Holyoke. “Muitos vão ver para perceber melhor quem ele é e o que poderá fazer no futuro quando Donald Trump desaparecer, quer isso seja no próximo ano ou daqui a cinco anos.”.A questão é que Vance tem pouca experiência política, ambição de sobra e muito a provar. “A sua campanha, até agora, tem sido turbulenta”, frisou Joel K. Goldstein. “Há mais pessoas que o veem de forma negativa que positiva, e as margens estão a alargar-se nas sondagens.”.O professor Holyoke considera que Tim Walz tem mais hipóteses de ser considerado vencedor do debate, caracterizando-o como calmo e imperturbável, por oposição a um Vance altamente tenso que a qualquer momento parece ter bebido vários cafés. “Walz provavelmente tem a vantagem.” .A idade pode também fazer a diferença. Goldstein nota que Harris (59) e Walz (60) estão dentro da norma em termos das idades em que políticos se lançam na corrida à Casa Branca. “Trump e Vance é que são discrepantes”, frisou. Trump, com 78, é o candidato presidencial mais velho de sempre a ser nomeado por um grande partido e Vance, com 40 anos, é um dos mais jovens. “Há provavelmente um maior risco de que Vance seja visto como inexperiente”, disse Goldstein, “do que como uma cara nova para o futuro.”.Tim Walz, um tipo comum.Um tipo comum, nascido numa aldeia, que tem armas e gosta de caçar, com o cabelo completamente branco aos 60 anos. Tim Walz é o atual governador do Minnesota, cargo para o qual foi eleito em 2018 e reeleito em 2022, e foi escolhido por Kamala Harris para seu candidato a vice-presidente nas eleições de 2024. .A simpatia desarmante e o ar comum levaram-no a ser considerado o “papá” da América, alguém parecido com tantos pais por aí fora, contando o mesmo tipo de piadas secas, que gosta de churrascos e futebol americano. Nascido no Nebrasca em 1964, Tim Walz passou a maior parte da sua carreira longe da política. Serviu 24 anos na Guarda Nacional, licenciou-se em Estudos Sociais e foi professor do secundário e treinador de futebol. .Chegou à política em 2005, eleito para a Câmara dos Representantes pelo 1º distrito do Minnesota, e alcançou a posição de governador 13 anos depois. Ficou conhecido por tornar gratuitas as refeições escolares e integrar o direito ao aborto na constituição do Estado. Cunhou os republicanos de “esquisitos” e passou à frente de candidatos como Josh Shapiro e Mike Kelly para a nomeação à vice-presidência..J. D. Vance, o menino-prodígio de Yale.A primeira vez que o nome J.D. Vance apareceu na televisão foi em 2020, nos créditos do filme Hillbilly Elegy (Era uma vez um sonho), com Glenn Close, Amy Adams e Gabriel Basso. O filme realizado por Ron Howard para a Netflix baseou-se na biografia com o mesmo título escrita por Vance em 2016, sobre a crise familiar em que cresceu numa pequena cidade do Ohio. Nesse ano, Vance – cujo apelido original é Bowman – opôs-se à candidatura de Donald Trump, caracterizando-o de “desastre moral” e “Hitler americano.”.Casado com Usha Vance, filha de imigrantes indianos, o menino-prodígio entrou na Universidade de Yale com uma bolsa e licenciou-se em Direito, tendo exercido advocacia antes de rumar a uma carreira na indústria tecnológica. Foi aí que conheceu Peter Thiel, o magnata ultraconservador que se tornaria um dos maiores apoiantes financeiros da sua campanha. Quando chegou ao Senado, em 2022, Vance já tinha feito uma inversão total da sua ideologia..Tornou-se um apoiante fervoroso de Trump e acabou por ser escolhido para seu vice, tendo mantido um perfil mediático mesclado com controvérsias e teorias da conspiração.