A passada quinta-feira ficou marcada pelo regresso de Muhammad Yunus ao Bangladesh para tomar posse como líder de um governo interino, prometendo devolver a democracia ao país depois de uma revolta liderada por estudantes ter posto fim aos 15 anos no poder da primeira-ministra Sheikh Hasina, que se refugiou na Índia. O Nobel da Paz jurou “defender, apoiar e proteger a constituição” naquele que classificou como “um dia glorioso para nós”..Entre os membros do seu gabinete estão os principais líderes do grupo Estudantes Antidiscriminação, que encabeçou os protestos, Nahid Islam e Asif Mahmud, e que sugeriram o nome de Yunus para o cargo..“O Bangladesh criou um novo dia de vitória. O Bangladesh conquistou uma segunda independência”, afirmou Yunus, de 84 anos, apelando à restauração da ordem após semanas de violência que fizeram pelo menos 455 mortos, apelando aos cidadãos para que se protegessem uns aos outros, incluindo as minorias que foram atacadas..“A lei e a ordem são a nossa primeira tarefa. Não podemos dar um passo em frente a menos que resolvamos a situação da lei e da ordem”, disse, sublinhando que “o meu apelo ao povo é: se confiam em mim, garantam que não haverá ataques contra ninguém, em qualquer parte do país”..Conhecido como o “banqueiro dos pobres”, Muhammad Yunus recebeu o Nobel da Paz em 2006 pelo seu trabalho de pequenos empréstimos em dinheiro a mulheres rurais, permitindo-lhes investir em ferramentas agrícolas ou equipamento empresarial e aumentar os seus rendimentos. O Banco Grameen, a instituição de microfinanciamento que fundou, foi elogiado por ajudar a desencadear um crescimento económico vertiginoso no Bangladesh, trabalho que tem sido copiado por vários países em desenvolvimento. Mas o seu perfil público no Bangladesh valeu-lhe a hostilidade de Hasina, que em tempos o acusou de “sugar sangue” dos pobres..Em 2007, anunciou a intenção de fundar o partido Poder do Cidadão, planos que abandonou meses depois, mas a animosidade criada pelo seu desafio à elite dominante persistiu. Yunus foi alvo de mais de 100 processos-crime e de uma campanha de difamação levada a cabo por uma agência islâmica liderada pelo Estado que o acusou de promover a homossexualidade. O governo forçou-o a sair do Grameen em 2011 - decisão contestada por Yunus, mas mantida pelo tribunal superior do país..Ele e três colegas de uma das empresas que fundou foram condenados em janeiro a penas de prisão de seis meses por um tribunal do trabalho de Daca que concluiu que não tinham criado um fundo de assistência social aos trabalhadores. No entanto, foram imediatamente libertados sob fiança enquanto aguardavam recurso. Os quatro negaram as acusações e o caso foi criticado como tendo motivações políticas, incluindo pela a Amnistia Internacional. Um tribunal de Daca absolveu-o na quarta-feira..Yunus nasceu numa família abastada na cidade costeira de Chittagong, em 1940, referindo a sua mãe, que oferecia ajuda a quem batesse à porta, como a sua maior influência. Ganhou uma bolsa Fulbright para estudar nos Estados Unidos e regressou pouco depois de o Bangladesh ter conquistado a independência em 1971. Foi então escolhido para liderar o Departamento de Economia da Universidade de Chittagong, mas o país enfrentava uma grave fome e sentiu-se obrigado a tomar medidas práticas, fundando o Grameen em 1983. “A pobreza estava à minha volta e eu não conseguia fugir dela”, disse em 2006..Os desafios que o esperam.Um dos desafios que o governo liderado por Yunus irá enfrentar será o papel que o exército irá desempenhar, depois de ter participado no afastamento de Hasina do poder, ao decidirem não se juntar à polícia e outras forças de segurança na repressão dos protestos. “A liderança militar terá um papel importante na supervisão desta configuração provisória, mesmo que não a lidere formalmente”, conforme explica Michael Kugelman, diretor do Instituto do Sul da Ásia do Wilson Center. “Muitos no Bangladesh preocupar-se-ão com o facto de que, se tivermos um governo interino a longo prazo, isso dará aos militares mais oportunidades de ganhar uma posição segura”, prossegue Kugelman, referindo que “no entanto, diria que o exército do Bangladesh parece hoje muito menos inclinado a desempenhar um papel ativista e central na política, em comparação com há várias décadas”..A segurança deverá também ser outro dos focos de atenção, depois de mais de 400 pessoas terem morrido nos protestos, mas igualmente devido aos ataques a minorias, incluindo hindus, vistos por alguns no país de maioria muçulmana como apoiantes de Hasina. “A primeira tarefa de qualquer governo interino deve ser garantir a protecção do direito das pessoas à vida, o direito à liberdade de expressão e de reunião pacífica, e encontrar formas de desescalar qualquer potencial para mais violência”, diz Smriti Singh, diretor da Amnistia Internacional para a Ásia Meridional..A economia é outra área a ter em conta. O Bangladesh registou um crescimento médio anual superior a 6% desde 2009 e ultrapassou a Índia em termos de rendimento per capita em 2021. No entanto, os dividendos deste crescimento foram partilhados de forma desigual, com dados do governo em 2022 a mostrar que 18 milhões de bangladeshianos entre os 15 e os 24 anos estavam desempregados. .A par disto, os tumultos das últimas semanas afetaram a indústria do vestuário, levando ao encerramento de várias fábricas. Fornecedor de muitas das principais marcas do mundo, incluindo Levi’s, Zara e H&M, o Bangladesh é o segundo maior exportador mundial de vestuário em termos de valor, a seguir à China - as 3500 fábricas de vestuário do país representam 85% dos cerca de 50 milhões de euros de exportações anuais..Por último, e não menos importante, há a questão da marcação de eleições para escolher um novo governo, depois de Hasina ter conquistado o seu quinto mandato (o quarto consecutivo) em janeiro numa votação desacreditada e sem uma verdadeira oposição. “Parte da razão pela qual o movimento de protesto ganhou um apoio tão generalizado foi o facto de o país não realizar eleições competitivas há 15 anos”, recorda Thomas Kean, analista do International Crisis Group, sublinhando que “o governo interino precisa de embarcar na longa tarefa de reconstruir a democracia no Bangladesh, que tem sido tão desgastada nos últimos anos”. .AFP | AFP or licensors.O estudante que fez cair o governo.Foi Nahid Islam que na terça-feira afirmou que o governo interino do Bangladesh deveria ser liderado por Mohammad Yunus, economista e empreendedor social que venceu o Nobel da Paz em 2006, garantindo que “é amplamente aceite”. Na quinta-feira tomou posse como membro desse mesmo Executivo, ficando com a pasta das telecomunicações..Islam, um estudante de Sociologia de 26 anos, lidera o Movimento de Estudantes Antidiscriminação, que começou por protestar contra o sistema de quotas nos empregos na Administração Pública, manifestações que acabaram por se tornar numa campanha para o afastamento da primeira-ministra Sheikh Hasina do poder. “Ela deve renunciar e enfrentar julgamento”, disse Nahid Islam no dia 3 perante uma multidão de milhares de pessoas junto ao monumento aos heróis nacionais em Daca, sob gritos de aprovação..O jovem, muitas vezes visto em público com uma bandeira do Bangladesh amarrada na testa, ganhou projeção nacional a 26 de julho quando foi detido, a par de outros estudantes da Universidade de Daca, durante uma vaga de violência que marcou os protestos - Islam e dois outros dirigentes do movimento estudantil foram retirados à força de um hospital da capital, onde estavam internados, por agentes à civil e conduzidos a um local desconhecido. Na altura, Islam disse à AFP temer pela sua vida. Foram libertados seis dias depois..Nascido em 1998 em Daca, Nahid é casado e tem dois irmãos. O pai é professor e a mãe doméstica. “Ele tem uma energia incrível e sempre disse que o país precisava de mudar”, disse à Reuters Nakib Islam, o seu irmãos mais novo..AFP | AFP or licensors.Arqui-rival de Hasina libertada.A ex-primeira-ministra do Bangladesh Khaleda Zia foi libertada no dia 6 após anos de prisão domiciliária depois de a sua inimiga, Sheikh Hasina, ter sido destituída de primeira-ministra e fugido do país. Zia, de 78 anos, tinha sido condenada a 17 anos de prisão por corrupção em 2018. Mais conhecida pelo seu primeiro nome, Khaleda lidera a principal força da oposição, o Partido Nacional do Bangladesh (BNP), encontrando-se com a saúde debilitada, confinada a uma cadeira de rodas..A rivalidade entre Zia e Hasina é conhecida como a “Batalha de Begums” - sendo “begum” um título honorífico muçulmano no Sul da Ásia para mulheres poderosas -, tendo as suas raízes no assassinato do pai de Hasina - o líder fundador do país, Sheikh Mujibur Rahman - e outros familiares num golpe militar de 1975. O marido de Zia, Ziaur Rahman, era então vice-chefe do exército e assumiu o controlo três meses depois, acabando por ser morto em 1981 noutro golpe de Estado, o que levou Khaleda à liderança do BNP..Zia liderou a oposição ao ditador Hussain Muhammad Ershad, boicotando as eleições viciadas de 1986. Ela e Hasina uniram forças para expulsar Ershad e depois enfrentaram-se nas primeiras eleições livres no Bangladesh. Zia venceu e liderou entre 1991-96 e em 2001-2006, com ela e Hasina a alternarem no poder..A antipatia mútua foi apontada como a causa da crise política de 2007 que levou os militares a estabelecerem um governo provisório - as duas estiveram detidas mais de um ano. Zia ganhou o respeito dos seus concidadãos pela sua atitude resoluta, embora a sua incapacidade de compromisso a tenha impedido de fechar acordos com aliados importantes no país e no exterior.