Já fez 50 anos de vida na América?Já. Já fiz. No dia 16 de dezembro, completei 53 anos de América, vindo do Rio de Janeiro.Explique-me isso, por favor. Eu sei que é açoriano, da Ilha do Pico, mas a sua primeira emigração não foi para a América, como era quase regra, mas sim para o Brasil. Como é que isso aconteceu?Estávamos em 1962, e o nosso país, Portugal, estava em guerra com as províncias ultramarinas. Havia guerra em Angola, depois também na Guiné e em Moçambique. E os meus pais nunca aceitaram a ideia de os filhos irem para a guerra. Eu trabalhava com o meu pai na agricultura, depois numa fábrica chamada Martins e Rebelo, na Silveira, de onde eu sou natural. Silveira, ilha do Pico. E chegando em casa, no mês de fevereiro de 1962, a minha mãe chorava copiosamente. “Porquê, mãe? Porque choras?”. “Porque tens 17 anos e quando chegares a fevereiro do ano seguinte fazes 18 anos. E depois não podes sair daqui. E o pai e eu não queremos que vás para a guerra”, respondeu-me. “Mas a vida é assim, mãe”. “Não. Escreve a um tio que está no Rio de Janeiro para fazer-te uma carta de chamada e um termo de responsabilidade.” Era para ir para o Brasil. E acontece que a documentação foi preparada. Embarquei na ilha do Faial no navio Funchal, a caminho de Lisboa, no dia 27 de novembro de 1962. Paragem na Madeira. Chegado a Lisboa, fiquei hospedado numa pensão na Rua da Junqueira. Fiquei hospedado uns dias e no dia 10 de dezembro embarquei num navio chamado Cabo San Roque, um navio espanhol. Levou 10 dias a chegar ao Rio, com escala nas Ilhas Canárias. Parou em Tenerife e chegou ao Rio no dia 20 de dezembro de 1962. O tal tio estava à minha espera, irmão da minha mãe. José Rodrigues. E conversámos. Ele tinha um açougue, como todos os açorianos. Praticamente todos que eu conheci, tinham um açougue ou estavam envolvidos em carnes. Talho, açougue, é a mesma coisa, não é assim? E o tio diz-me: “Ah, não vais para o açougue, vais estudar.” Foi uma recomendação que deu certo. Não tinha estudado nos Açores?Tinha a 4.ª classe.E o seu tio decidiu investir na sua educação?Nem mais. Então eu fiz curso comercial, curso de Contabilidade. Trabalhei sempre em escritórios. Depois o Brasil instituiu o chamado Fundo de Garantia de Tempo de Serviço. Um tipo de contribuição de cada empregado, para quando fosse despedido da empresa, ter uma certa indemnização. Especializei-me em leis do trabalho brasileiro. Tinha uma vida tranquila. Casei-me, conheci uma senhora natural de Chaves, com quem me casei, a jovem Laurinda. Laurinda é de Bobadela, concelho de Boticas, distrito de Vila Real.O açoriano foi conhecer uma transmontana no Rio de Janeiro e casaram-se…Laurinda chegou ao Rio com a família, tinha 9 anos de idade. Em 1956. Eu cheguei em 1962. Pronto, então a minha vidinha foi boa. Escritório... Casa... Fim de semana, quando possível, numa praia.Filhos nessa altura já tinha?Casámo-nos em 1966. Vieram três crianças. Ricardo, Márcia e Carlos. Associei-me ao meu Vasco da Gama. O Clube de Regatas Vasco da Gama. Que, por sinal, também não está nada bem. Mas foi o meu clube de coração no Rio. Foi o Vasco.Entretanto, lá longe nos Açores, continuava a viver a família…Estávamos em 1967. Os meus pais também não aceitaram que o meu irmão Artur fosse para a tropa. Ele também contava 17 anos. E fizeram com que viessem para a América. E vieram os meus pais com o Artur. Aqui para os Estados Unidos. Ah, nesse caso, não veio só o Artur! Os seus pais também emigraram para os Estados Unidos…Correto.Para aqui? Para a Califórnia?Para a cidade de Gustine. Fica aqui mais para o Oeste, perto de nós. Uns 20 minutos de distância. Isto foi em 1967. Artur foi crescendo. Em 1972, decidiu casar-se. E mais uma vez o amor da mãe. “Escreve ao teu irmão para que venha ser o teu padrinho de casamento”, disse-lhe ela. Providenciámos tudo. E desembarquei com a Laurinda e as três crianças. Aqui na Califórnia. Em 16 de dezembro de 1972. No dia do casamento. Vinham apenas para o casamento?Chegámos no dia. Fomos à igreja. Foi choros e mais choros. E disse-me a minha mãe, “já não voltas para o Brasil”. “Bem, mas a minha vida está no Brasil”, ainda tentei explicar. E ficámos na América.Não se viam há muitos anos? Há 10 anos. Também não tínhamos falado muito, porque o telefone era caro.A sua mãe disse: “agora ficas na América”.Nem mais. Não foi fácil. A Laurinda voltou ao Brasil. Porque a lei exigia que os nascidos no Brasil não podiam ficar legalmente no país onde escolhessem sem voltar ao Brasil. Por causa das crianças. Eu fiquei cá. E depois ela volta com os meninos e a nossa vida passou a ser cá. Eu trabalhei na agricultura, na área de Gustine, durante quase cinco anos, até que surgiu a ideia do meu tio me vender a empresa. A A. V. Thomas, vem de António Vieira TomásEsse seu tio António já estava cá há muitos anos na Califórnia?Desde 1920. Ele nasceu em 1900, veio para cá com 20 anos de idade. E esteve sempre envolvido em agricultura. Tinha na área de Gustine uma plantação de tomate, de feijão, de melancia. E tinha produção e processava batata doce na cidade de Livingston.E o seu tio desafiou-o a ficar com a empresa?Convidou-me. Disse-me que eu podia comprar a empresa. E eu aceitei. Agradeci a sua sugestão e o seu apoio. Era um empresa que vai ver comigo onde é que está. Lá foi o início. Somos ainda proprietários desse lugar em Livingston. Depois comprámos aqui este terreno em Atwater. Aqui não tinha nada. Não tinha nenhuma construção aqui. São 40 alqueires de terreno, com 25 armazéns. Portanto, a empresa original é em Livingston. E agora estamos em Atwater, na sede principal, mas mantivemos sempre o estabelecimento original em Livingston. A. C. Thomas Produce, Livingston, CalifórniaMantém o nome original da empresa. Isto é também uma homenagem ao seu tio. Um agradecimento ao seu tio. Porquê? Porque ele foi generoso consigo nesse processo? Foi um segundo pai. Foi um conselheiro. E deu-me uma oportunidade que eu almejava na vida.Pelo que eu percebo, depois daquela vida dura nos Açores na infância e durante a juventude, a vida que estava a ter no Rio de Janeiro era uma vida já mais bem-sucedida. Mas os primeiros momentos na América são difíceis? É quando volta a trabalhar na agricultura, algo que não fazia desde que saiu do Pico?É verdade.E então, com este tio, tem a oportunidade de mostrar o seu arrojo. Já tinha a noção de que tinha uma vertente empresarial em si?Eu acho que sim. Modéstia à parte, eu sempre fui um bocado organizado. Até rigoroso comigo mesmo. Disciplinado. E hoje mais do que nunca. Quem não tiver este princípio de ser pontual, eficiente, disciplinado, rigoroso, não pode exigir que os outros o sejam. Tem de começar por nós. Eu não posso dizer a um funcionário “não fumes aqui” e eu estar a fumar.Tem de dar o exemplo. Embora eu nunca tenha fumado. Mas mesmo se fumasse, não fumaria num lugar onde é proibido, só porque eu sou proprietário. Eu tenho de dar o exemplo primeiro. Por isso, acho que não foi tão fácil assim. Mas se já temos por princípios como a vida deve ser corrida e como o negócio deve ser corrido torna-se um pouco mais fácil. Nós quando sugerimos a alguém fazer algo, dar uma ordem, não deve ser com indisciplina ou com palavras não-adequadas, deve ser com educação. Procuramos fazer isso, por isso temos empregados aqui há 40 e há quase 50 anos. Ainda sobre a sua adaptação aqui à América. Falava alguma coisa de inglês quando chegou aqui à América? Ou a Laurinda?Não, não falávamos. Isso também foi outro desafio.Pois, mas é assim. Quando chegámos aqui e decidimos permanecer começámos a ir à escola noturna. Apesar de todas as dificuldades que este país atravessa ainda é a maior potência e ainda é a terra da oportunidade. A América é a terra das oportunidades. Desde que as pessoas queiram ter rigor, disciplina, pontualidade e estejam dispostas a muito trabalho. Este país oferece-nos muitas regalias que outros não oferecem. E uma delas é escola noturna para adultos nos liceus, os chamados High School. Então, morava na área de Gustine e o High School de Gustine tinha essa possibilidade de qualquer pessoa, mais para imigrantes, frequentar a escola e aprender a ler, a escrever e a falar inglês.Portanto, os dois foram para a escola noturna para aprender o inglês. Durante quase cinco anos não perdemos um dia de aulas.E os meninos? Os dois meninos e a menina, como é que era? Iam para as suas escolas.Mas sempre fizeram questão que eles falassem também português. Sempre exigimos. Não era então uma solicitação, era uma exigência. “Os meninos cá em casa é só português.” Quando falavam entre eles em inglês o chinelo tocava. O chinelo tocava, mas não era música. Porque eles na escola falavam inglês. Rapidamente aprenderam.Hoje eles agradecem que nós sempre tenhamos insistido no português. Porque há muitos meninos que para cá vieram que não houve essa exigência da família para que eles falassem a língua materna. Eles dizem “foi pena que os meus pais não exigiram que eu falasse”.Os dois rapazes, que agora já são uns homens bem crescidos, trabalham aqui na empresa. A sua filha Márcia é que é professora.É verdade.A família já tem sucessão na liderança. Foi já passando o testemunho para eles.Em grande parte, não totalmente, mas em grande parte sim..Além da parte do processamento, também produz. Quantos acres, convertidos para hectares, são de cultivo de batata doce? A última vez que eu fiz as contas, ou os cálculos, melhor dizendo, eram seis mil acres, o equivalente a 2428 hectares. Plantamos 2428 hectares de batata doce, mas nem todos são de nossa propriedade. Além disso ainda compramos a produtores que querem escoar a batata doce.A batata doce é a aposta total da A. V. Thomas?Só batata doce.E os americanos gostam de batata doce?Gostam muito e procuramos tratar muito bem deles, porque eles têm tratado muito bem de mim. Mas não vendem só para os americanos.Não, nós cobrimos o continente norte-americano desde o México, aos Estados Unidos e ao Canadá. No último cálculo que eu fiz são mais de 500 milhões de pessoas, mais do que a população da União Europeia. Os Estados Unidos neste momento têm mais de 340 milhões. Eu penso que o México ronda os 130 milhões. O Canadá já deve estar nos 40 ou 41. Mais de 500 milhões de potenciais consumidores para uma empresa que tem 65 anos de vida e quase 50 sob a nossa administraçãoQuantos trabalhadores tem a A. V. Thomas?Uns 1600, 1700 na época alta.Há algum trabalho sazonal, por causa da época da colheita, não é?Sim, temos sempre coisas que fazer, mas há uma época alta que é o tempo da colheita que acabou há pouco tempo. Acabou dia 1, 2 de novembro, que é o início da época alta de empacotamento para o Dia da Ação de Graças.Os americanos comem muita batata doce? É uma tradição antiga, pelo que eu entendo, comer batata doce e carne de peru.Da batata doce que vende há uma que lhe deu uma relevância especial, pois foi o primeiro produtor que tem a ideia da batata doce biológica, não é? Sim, em 1988.Que é algo de que na altura ninguém falava?Pouquíssima gente falava de produtos biológicos. Da batata doce nem se pensava. Houve a ideia de lançar. Começámos com muito pouco e felizmente este ano, agora talvez 40% das nossas vendas são produto biológico.Depois teve uma outra ideia que lhe deu outra vez mais relevo, que é a batata doce que vai ao microondas. É verdade. É o chamado empacotamento em vácuo.E onde é que nasceu o título de “rei da batata doce” ou, aqui na América, “King Yam”?Felizmente nós fizemos amizade com quem geria muitos dos supermercados da América. A América tem grandes empresas, as chamadas Grocery Chains, como o Safeway, como o Raley’s, como o Walmart, como o Costco, e nós fizemos uma amizade muito grande com o Safeway. Era hábito juntarmo-nos para uma festa de Natal entre os gerentes do Safeway e os nossos num restaurante chamado Waterfront, em São Francisco. E nesse jantar de Natal , em 1990 e poucos, nós tínhamos todo o negócio do Safeway entre Canadá e Estados Unidos e eles presentearam-me com um certificado, e com a matrícula que eu uso no meu carro chamado King Yam. E daí os portugueses começaram também a chamar-me o rei da batata doce já que os americanos tinham chamado.E tendo em conta que usa na sua matrícula do carro o King Yam, significa que é uma coisa que lhe dá natural satisfação?Sim, quem é que não gosta de ser rei? Sei que continua em muitos aspetos ainda muito ligado a Portugal, aos Açores e sobretudo à sua Silveira. Tem feito investimentos nos Açores? Eu sou do sul do Pico, localidade da Silveira, concelho das Lajes do Pico. E há uns anos, numa das visitas, disseram-me “este lugar, este concelho não tem um hipermercado”. Então tivemos a ideia de dar início a um hiper chamado Âncora Parque, que se encontra estabelecido na Vila das Lajes. Mais ou menos nessa altura também não havia um salão comunitário na minha Silveira, a Silveira onde eu nasci. Silveira é uma paróquia, mas não é freguesia, é curioso. Mas tem a sua paróquia, tem as festas em louvor do Divino Espírito Santo como tem em todos os Açores, não é? E também não havia um salão comunitário. Então pusemos mãos à obra e felizmente inaugurámos essa obra. No dia 17 de agosto de 2003 foi inaugurado o Salão da Silveira. De certa forma, Portugal também tem reconhecido esse seu envolvimento com a comunidade, aqui na América, e também com o próprio país, não é? Há uma estátua na sua terra natal e também há a condecoração pelo Presidente Cavaco Silva. Como é que é a sua ligação emocional com Portugal? Sei que é do Benfica, e quando vê o Benfica fica ao rubro. E quando vê a seleção?A mesma coisa, como se fosse o Benfica, a mesma coisa. Acompanho os jogos todos. A propósito, fomos ao Qatar há três anos. Fui ver o Mundial. Fiquei muito triste quando Portugal perdeu com Marrocos e veio para casa..A ligação aos Açores é muito forte e conhecida. A família mantêm também a ligação com Trás-os-Montes?Normalmente vamos à terra da Laurinda todos os anos. Às vezes mais de uma vez no ano. Passamos lá uma temporada na aldeia. É no concelho de Boticas, a terra do bom presunto. A Laurinda ser de Trás-os-Montes é um pouco uma exceção aqui na comunidade portuguesa na Califórnia, sobretudo no Vale de San Joaquin. São quase todos açorianos, certo? É verdade. Os continentais que estão por aqui são quase todos ligados aos açorianos por casamento. Há uns quantos como eu que estiveram no Brasil. Muitos casaram-se com portuguesas do continente, que depois para cá vieram. A sua empresa é ligada à agricultura, mas há aqui muitos portugueses também a trabalhar com gado e com leitarias.O grande número de portugueses que têm empresas é na agropecuária. Vaca leiteira. Aqui chamam-se leitarias. Em 1972, quando cheguei aqui calculava- se que 55% do leite produzido na Califórnia era por gente portuguesa ou seus descendentes. Estes açorianos que estão aqui vêm de várias ilhas ou há algumas que predominam? Um pouco de todas as ilhas. No entanto, predominam os jorgenses e os terceirenses. São ilhas que têm muita tradição na criação de gado .Sim, sim, sim. A maior parte dos portugueses que aqui estão tem negócio na agropecuária.Estou aqui a conversar com um homem que já emigrou duas vezes. Ou melhor, que, depois do Brasil, é pela segunda vez imigrante, visto daqui dos Estados Unidos.Dez anos no Brasil, 53 aqui.Como é que reage a este debate todo que há na América sobre combate à imigração ilegal? Na Califórnia esta é uma questão que é certamente muito debatida.Quando se fala de imigração, recordo-me daquele que foi, na minha opinião, senão o maior, um dos maiores presidentes deste país, Ronald Reagan. O único presidente que teve a coragem, contra tudo e contra todos, de fazer a primeira e única amnistia. Legalizar quem cá estava. Ele procurou maneira de quem não servia, aqueles que eram persona non grata - é assim que se diz, não é? - irem embora para as suas terras. Mas quem era honesto, quem era trabalhador, quem estava aqui, ser legalizado. Não importa como vieram. Porque muitos entram aqui legalmente. Eu entrei com a minha família legalmente por seis meses. É claro que depois quis ficar. E como tinha um passado limpo, um cadastro limpo, fiquei legal. E depois Ronald Reagan fez isso e com isso fez muito bem a muita gente. E bem ao país porque eles passaram a pagar os seus impostos como devia ser. A comprar as suas casas. A fazer uma vida tranquila. E desde então mais nenhum governo o fez, por razões que eu não posso nem devo dizer, embora saiba. E é não respeitar muitas famílias. E muito boas pessoas. Ninguém quer, muito menos eu, gente que não serve. Em todas as raças temos gente muito boa e gente que não nos interessa. E esses nem deviam ter entrado. Mas se entraram, e se um dia houver amnistia, que não fiquem por cá, que vão embora. Mas os outros legalizem-nos. Porque este país precisa dessa gente trabalhadora. Este país, e muito em particular a Califórnia. Para a sua agricultura, para a agropecuária, para a construção. Para aqueles trabalhos que mais ninguém quer fazer, os latinos são indispensáveis. Há semelhanças com o nosso país. O nosso Portugal. E até mesmo nos Açores, na construção. E nas planícies do Alentejo, nos trabalhos de mão de obra não-qualificada. Eu julgo que o nosso país também precisa dos imigrantes. Que vêm de muitos países. E que temos por obrigação, aqueles que o merecem, de serem bem tratados..Do Pico para a Califórnia, o "rei da batata doce" vende cem milhões de quilos por ano