"Merci, Gisèle!” Uma multidão aguardava esta quinta-feira a saída de Gisèle Pelicot do tribunal para lhe agradecer por ter dado voz às mulheres vítimas de violência sexual. Ela, por seu lado, agradeceu a todos os que a apoiaram nos últimos três meses e disse que nunca se arrependeu da decisão de dar a cara. Momentos antes, o seu ex-marido tinha sido condenado à pena máxima de 20 anos de prisão por a ter violado e drogado para que dezenas de outros homens também a violassem, com 50 desses agressores condenados a penas entre os três e os 15 anos de prisão..Gisèle, 72 anos, tornou-se num símbolo feminista em França porque recusou ser apenas mais uma vítima e fez tudo para que “a vergonha mude de lado”. No início do julgamento, abdicou do anonimato, permitindo dar um rosto à história macabra de que foi alvo. “Ao abrir as portas deste julgamento, no dia 2 de setembro, queria que a sociedade pudesse servir-se dos debates que ali tiveram lugar. Nunca me arrependi dessa decisão. Tenho agora confiança na nossa capacidade de conquistar coletivamente um futuro em que todos, mulheres e homens, possam viver em harmonia, com respeito e compreensão mútua”, disse esta quinta-feira..Durante o julgamento, que durou três meses, o seu ex-marido, Dominique Pelicot, admitiu tê-la drogado durante uma década para a violar e para permitir que outros homens, que recrutava através da Internet, fizessem o mesmo. As agressões sexuais, que decorriam na casa da família, em Mazan, eram filmadas e fotografadas por Pelicot, só tendo sido descobertas quando ele foi apanhado num supermercado a filmar por baixo das saias das clientes. A investigação encontrou depois as imagens de 200 violações no seu computador. .Os investigadores dizem que 72 homens participaram nas agressões, mas só 50 foram identificados e se sentaram no banco dos réus. A maior parte dos arguidos, com idades entre os 27 e os 74 anos, negaram as acusações, alegando ter sido “manipulados” por Pelicot - que apelidaram de “monstro” ou “lobo”. Disseram em tribunal que acreditavam que Gisèle sabia o que estava a acontecer e que estavam a participar numa fantasia sexual do casal. .Dos 50 homens que foram julgados, 40 estão detidos, três têm mandados de prisão diferida por questões de saúde e seis foram libertados por já terem cumprido a pena ou podem cumprir o tempo que falta com pulseira eletrónica, por exemplo. Um arguido está em fuga e foi condenado à revelia. As sentenças foram inferiores ao pedido pelo Ministério Público - que queria que a maioria dos arguidos cumprisse entre 10 e 15 anos. Ambos os lados têm dez dias para decidir se recorrem ou não das sentenças. .“Respeito o tribunal e a decisão”, disse Gisèle no final do julgamento, mas os seus três filhos mostraram-se mais desiludidos, considerando “baixas” as penas para os coarguidos. Também eles foram vítimas do pai, como testemunharam no julgamento. Pelicot foi igualmente condenado por partilhar fotografias íntimas da filha Caroline (que acredita que pode ter sido drogada e abusada como a mãe, mas o tribunal não encontrou provas e o pai nega-o) e das duas noras. O filho mais novo, Florian, disse que o caso levou ao seu divórcio e o mais velho, David, teme que o pai possa ter abusado do neto (Pelicot negou). Caroline vai publicar um livro sobre o caso: E Deixei de te Chamar Papá sairá em fevereiro em Portugal, revelou esta quinta-feira a editora Guerra e Paz..Para as associações feministas francesas, que destacam a “coragem” de Gisèle, “o combate contra a impunidade está longe de acabar”. Em França apela-se a “reformas estruturais” à lei depois deste processo “histórico”, nomeadamente em relação à questão do consentimento. .susana.f.salvador@dn.pt