Apesar das cedências de última hora para tentar conseguir o apoio da extrema-direita de Marine Le Pen, o primeiro-ministro francês, Michel Barnier, acabou mesmo por recorrer a um mecanismo previsto na Constituição para aprovar o orçamento para a Segurança Social sem ser votado pelos deputados. Um gesto que levou de imediato A França Insubmissa (esquerda radical) a apresentar uma moção de censura para fazer cair o governo, com o Reunião Nacional (RN) a dizer que votará a favor e apresentará também uma versão..“A partir de agora, senhoras e senhores deputados, todos devem assumir as suas responsabilidades e eu assumo as minhas”, tinha dito Barnier ao concluir o discurso na Assembleia Nacional, após recorrer ao artigo 49.3 da Constituição francesa, lembrando que cabia aos parlamentares decidir se a França entraria “em território desconhecido”. O primeiro-ministro apelou a que dessem prioridade ao “futuro da nação” em detrimento de “interesses particulares”. Mas a resposta da oposição foi imediata. .Barnier, d’Os Republicanos (centro-direita), não é o primeiro a recorrer ao 49.3. Mas fá-lo menos de três meses depois de ter sido nomeado pelo presidente Emmanuel Macron - uma decisão polémica após umas eleições ganhas pela esquerda na segunda volta, depois do bom resultado do RN na primeira..Barnier tem sobrevivido estes meses graças ao apoio da extrema-direita, mas essa linha de salvação parece ter chegado ao fim - apesar das concessões de última hora. Após um telefonema com Le Pen durante a manhã, o executivo cedeu noutra linha vermelha do RN e garantiu que não ia parar de reembolsar os doentes pela compra de certos medicamentos. Contudo isso não foi suficiente, com a líder da extrema-direita francesa a querer também a desindexação das pensões de reforma à inflação..No final, Barnier não arriscou ir a votos e preferiu recorrer ao artigo 49.3 - sabendo à partida que isso iria desencadear moções de censura. Os deputados tinham 24 horas, mas não precisaram de tanto para apresentar logo três - uma da França Insubmissa sozinha, outra com os aliados da Nova Frente Popular e outra do RN. São votadas no prazo de 48 horas, o que significa que o governo pode cair já amanhã. Basta 288 votos a favor para passar..“O primeiro-ministro acaba de acionar o artigo 49.3 da Constituição para passar o orçamento da Segurança Social. Este texto, como o governo, merecem a censura”, escreveu no X o grupo parlamentar do RN, antes de Le Pen falar aos jornalistas. Barnier “disse que todos assumirão as suas responsabilidades, então nós assumiremos as nossas. Vamos apresentar uma moção de censura e votaremos a favor da censura do governo”, indicou. O partido vai votar a favor até das moções à esquerda, apesar de os textos conterem algumas críticas à extrema-direita. .Mais cedo, já a líder do grupo parlamentar da França Insubmissa tinha anunciado o que ia fazer. “A queda de Barnier está registada. Macron será o próximo”, indicou Mathilde Panot. E se o primeiro-ministro estaria a contar com alguma divisão dentro da aliança da esquerda esta parece não se confirmar. O líder parlamentar socialista, Boris Vallaud, deplorou o facto de “ser claramente mais apropriado” a Barnier dialogar com Le Pen “do que falar com a esquerda e em particular com o Partido Socialista”. .Fora alguma surpresa de última hora, o governo de Barnier irá mesmo cair. É preciso recuar até 1962, a Georges Pompidou, para ter o único executivo da V República afastado numa moção e censura (em mais de 130 tentativas). Na altura, a censura deveu-se à pressão do presidente, o general Charles de Gaulle, para mudar a lei para que o presidente fosse eleito por sufrágio universal (e não por um colégio de grandes eleitores). De Gaulle acabaria por dissolver a Assembleia e, nas eleições, conseguiria a maioria absoluta, com Pompidou a regressar ao Matignon. Entretanto, em referendo, os franceses aprovaram a eleição por sufrágio universal. .Agora, se for aprovada a censura, Barnier tem que se demitir e caberá ao presidente - que segundo a Constituição é o único que tem o poder para o fazer -nomear um novo primeiro-ministro. Será difícil que haja um novo executivo antes de 2025, devendo haver um voto para que o orçamento de 2024 se mantenha em uso até ser votado outro. .susana.f.salvador@dn.pt