Para compreender a atual vontade de poder da China é preciso revisitar o chamado século das humilhações, o século que se seguiu à derrota na Guerra do Ópio? Penso que a resposta curta é sim, porque um dos motores do sentimento nacionalista é a reação à humilhação sofrida a partir do século XIX. Mais abrangentemente, penso que na cultura política chinesa há um sentimento de superioridade intelectual, de superioridade civilizacional. E isto apesar de, em vários períodos, a China ter chegado a ser governada por dinastias estrangeiras, como a dos mongóis e a dos manchus, e ter sido semicolonizada a partir do século XIX. Mas a vontade de poder da China não passa pela conquista, como, numa comparação histórica, fizeram os portugueses e os espanhóis e depois nós os franceses e também os ingleses a partir da época das grandes descobertas. A vontade de poder da China é virada para ela mesma..Qual é o papel do presidente Xi Jinping na atual visão geopolítica? Tem uma influência enorme, porque Xi Jinping, depois de presidentes anteriores reformistas muito influenciados pelos modelos estrangeiros, pelo menos a nível económico e tecnológico, surge como um conservador, alguém que reteve da sua juventude a ideia de uma China profunda, ligada à terra, e que, se não deixa de olhar para o estrangeiro em termos geopolíticos, é na China que se centra o seu pensamento..Nessa lógica de a China recuperar a centralidade de outrora, está o país em condições de eliminar a influência dos EUA na Ásia Oriental? Existe há muito no pensamento militar chinês a determinação de fazer recuar a presença militar americana para lá da primeira cadeia de ilhas e mesmo para lá da segunda. A primeira cadeia são as Senkaku/ /Diaoyu, a segunda inclui Guam. Mas uma coisa é querer outra é poder. Mesmo com um grande investimento militar, incluindo naval, não é certo que a China ganhasse um conflito com os EUA, mesmo no estreito de Taiwan. Mas, a cada ano que passa, a força da economia permite-lhe reforçar esse poder..A aliança dita das democracias, o Quad, que junta EUA, Japão, Austrália e Índia, é suficientemente sólida para contrabalançar a China ou não passa de um esforço para enviar uma mensagem à China? Não creio que aquilo que no jargão estratégico designamos por Quad seja uma aliança formal contra a China. É certamente a China a motivação para esse grupo de países, mas no máximo podemos dizer que apostam numa dissuasão e, de certa forma, numa tentativa de equilibrar as pressões económicas e diplomáticas chinesas. Por exemplo, o objetivo mais evidente da cimeira de há um mês foi um projeto de distribuição de mil milhões de vacinas contra a covid-19 a países da região..Pensa que a Índia poderá ter uma palavra decisiva no equilíbrio de poder da Ásia num futuro próximo? Ainda há dias, o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês fez uma advertência ao Japão, como que relembrando o estatuto tradicional de liderança da China na região, mas com a Índia, apesar de tudo, a China terá de ter uma atitude diferente, pelo peso populacional. Para já, a Índia tem de procurar, para se afirmar, o apoio do Ocidente, dos EUA mas também, por exemplo, da França. Ao mesmo tempo, apesar do conflito fronteiriço no Ladakh, nos Himalaias, a Índia não tem interesse numa aliança formal contra a China, para poder guardar liberdade estratégica. A Índia tem plena consciência de que pesa menos do que a China, mesmo que o seu ritmo de crescimento nos últimos anos seja impressionante e exista a vontade de cada vez mais empresas desviarem investimentos para a Índia. Mas a médio prazo a realidade pode mudar. A população da Índia, igual à da China, será mais jovem..Existe hoje uma aliança de conveniência da China com a Rússia. Existem, porém, riscos de um conflito se Moscovo notar que perante o vazio demográfico siberiano Pequim poderá ter a tentação de povoar esses territórios russos? Existe um grande diferencial populacional entre os dois países, sim, mas a presença militar russa na fronteira entre os dois países é enorme. E apesar das fraquezas atuais da Rússia, ninguém pode desprezar as capacidades militares do país, mesmo além do arsenal nuclear, vestígio do seu estatuto de superpotência durante a Guerra Fria . Mas, sobretudo, os dois países têm interesse em se apoiar mutuamente. São dois regimes autoritários com interesses em comum, por exemplo a partir do momento em que a Rússia sofreu sanções dos países ocidentais teve necessidade de se aproximar da China, mesmo que as trocas comerciais sejam desproporcionadas e isso alimente a desconfiança russa a longo prazo. Hoje a solidariedade entre os dois dirigentes é o fator mais importante..A Europa tem uma palavra a dizer na competição entre China e EUA? Depende da capacidade da Europa em agir com um todo. Sabemos que não existe, apesar das intenções, uma vertente militar da UE. Também não existe uma ação europeia concertada em termos de inovação, de pesquisa, áreas em que os seus Estados membros são fortes. A lentidão de decisões faz também que perca terreno para estes países mais decididos, mais rápidos, que são os EUA e a China..Joe Biden vai continuar política de confronto dos EUA com China adotada por Donald Trump? Existe continuidade na estratégia político-militar e na avaliação do risco que constitui a China em vários planos. Nessa perspetiva não há uma rutura entre a administração Biden e a de Trump. O que muda profundamente são duas coisas: uma administração coerente com o que é a sociedade americana, que quer coesão económica e social, e uma vontade de reatar com os aliados, sobretudo a Europa. Contrariar a China não só no plano militar e geopolítico, mas evitar também que as falhas na sociedade ocidental favoreçam a China. De uma certa maneira a China é o estimulante para os Estados Unidos se reformarem..Qual a grande fraqueza da China? Não diria uma. Diria duas: uma economia cuja produtividade estagna, apesar do grande esforço tecnológico; e, facto ainda importante, o regresso ao totalitarismo e a ditadura pessoal conservadora de Xi Jinping são elementos que vão acabar por isolar a China e prejudicar a sociedade chinesa no plano económico e social. Há um preço a pagar..leonidio.ferreira@dn.pt