Nobel da Paz: "Para ter democracia, devemos estar dispostos a lutar pela liberdade"

Líder opositora venezuelana não está na cerimónia. O discurso dela foi lido pela filha, Ana Corina Sosa.
A filha de María Corina Machado recebe o Nobel da Paz em nome da mãe.
A filha de María Corina Machado recebe o Nobel da Paz em nome da mãe.EPA/STIAN LYSBERG

"A minha geração nasceu numa democracia vibrante e nós tomávamo-la como garantida", disse Ana Corina Sosa, lendo o discurso que a mãe, a líder da oposição venezuelana María Corina Machado, tinha preparado para a cerimónia de entrega do Nobel da Paz. A opositora, que vive na clandestinidade há mais de um ano, não chegou a tempo a Oslo.

"Presumíamos que a liberdade era tão permanente como o ar que respirávamos. Valorizávamos os nossos direitos, mas esquecíamos os nossos deveres", indicou.

"Quando finalmente nos apercebemos da fragilidade das nossas instituições, um homem que outrora liderara um golpe militar para derrubar a democracia foi eleito presidente. Muitos acreditavam que o carisma poderia substituir o Estado de Direito", acrescentou, falando em Hugo Chávez.

A líder da oposição venezuelana não está na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz, em Oslo, mas a sua filha Ana Corina Sosa leu o discurso (em inglês) que preparou para a ocasião. O lugar de María Corina Machado está vazio no pódio.

A 10 de outubro, o Comité Nobel Norueguês anunciou que o prémio deste ano ia para María Corina Machado “pelo seu trabalho incansável na promoção dos direitos democráticos do povo venezuelano e pela sua luta para alcançar uma transição justa e pacífica da ditadura para a democracia”

Antes de começar a ler o discurso da mãe, Ana Corina Sosa agradeceu o prémio, dizendo que dentro de poucas horas poderá abraçá-la, mas outras filhas e filhos não poderão fazê-lo.

O discurso começou com o desejo de contar "a história de um povo e de uma longa marcha pela liberdade" e contando como a Venezuela teve uma das primeiras constituições democráticas e de tudo o que alcançou ao longo dos séculos.

E faz uma referência aos portugueses, entre os refugiados e migrantes que a Venezuela recebeu. "Eles tornaram-se venezuelanos." A própria María Corina Machado é descendente de portugueses.

"Construimos uma democracia que se tornou na mais estável na América Latina", mas "até a mais forte democracia enfraquece".

O discurso fala depois das eleições presidenciais de julho do ano passado, de como a oposição conseguiu as provas da vitória de Edmundo González (a própria María Corina Machado foi impedida de concorrer, apesar de ter ganho as primárias). Mas o regime não aceitou a derrota.

"Este prémio tem um significado profundo. Lembra ao mundo que a democracia é essencial para a paz. E mais do que tudo, o que nós venezuelanos podemos oferecer ao mundo, é a lição forjada nesta viagem longa. Para ter democracia, devemos estar dispostos a lutar pela liberdade", afirmou.

O discurso de María Corina Machado termina com o desejo de ver regressar os nove milhões de venezuelanos que tiveram que deixar o país. E lembra os presos políticos, os jornalistas que ficaram sem voz, os artistas, os líderes mundiais que apoiaram a Venezuela, e "os milhões de venezuelanos anónimos que arriscaram a sua vida" por amor ao seu país.

"A eles pertence o futuro", conclui.

"Senhor Maduro, aceite o resultado das eleições e demita-se"

O líder do Comité Nobel Norueguês, o deputado Jørgen Watne Frydnes, começou a cerimónia falando de vários venezuelanos, presos políticos, que estão desaparecidos ou detidos pelo regime de Nicolás Maduro. "Alguém que ainda acredita em dizer a verdade pode desaparecer violentamente num sistema construído especificamente para erradicar esta crença", afirmou.

"Enquanto nos sentamos aqui, na Câmara Municipal de Oslo, pessoas inocentes estão presas na Venezuela. Não podem ouvir os discursos, apenas os gritos das pessoas que estão a ser torturadas", acrescentou.

"A Venezuela transformou-se num Estado autoritário e brutal, enfrentando uma profunda crise humanitária e económica. Enquanto isso, uma pequena elite no topo, protegida pelo poder político, pelas armas e pela impunidade legal, enriquece", denunciou.

"Quando a democracia perde, o resultado é mais conflito, mais guerra", avisou, dizendo que a situação na Venezuela não é única no mundo e que há cada vez mais líder autoritários. "Os regimes autoritários aprendem uns com os outros", afirmou, dizendo que atrás de Maduro está Cuba, a Rússia, a China, o Irão, o Hezbollah. "Tornam o regime mais robusto."

O discurso é interrompido para aplaudir o presidente eleito da Venezuela, Edmundo González. Um segunda aplauso após a indicação de que apesar de María Corina Machado não ter chegado a tempo para a cerimónia, ela está em segurança e estará em Oslo mais tarde.

"As pessoas que vivem sob ditaduras têm muitas vezes de escolher entre o difícil e o impossível. No entanto, muitos de nós, a uma distância segura, esperamos que os líderes democráticos da Venezuela prossigam os seus objetivos com uma pureza moral que os seus adversários nunca demonstram. Isso é irrealista. É injusto. E demonstra ignorância histórica", reiterou o líder do Comité Nobel Norueguês.

Jørgen Watne Frydnes lembra que a origem da violência não são os ativistas e os opositores, é quem está no poder, falando das críticas de que a oposição é alvo por alegadamente defender uma invasão. "Esta é a versão da realidade que o regime de Maduro apresenta ao mundo: a de que é o garante da paz. Mas a paz baseada no medo, no silêncio e na tortura não é paz. É submissão, disfarçada de estabilidade", referiu.

O deputado centra-se depois na própria María Corina Machado, que há duas décadas pede eleições livres, que defende "votos, não balas". E das eleições presidenciais do verão de 2024, quando os opositores conseguiram recolher as atas das urnas de voto para provar a vitória de Edmundo González. "Mas o regime negou tudo" e "agarrou-se ao poder".

María Corina Machado pediu apoio internacional, não a invasão do país, reforça.

E deixou uma mensagem a Nicolás Maduro e a outros líderes autoritários: "O vosso poder não é permanente. A vossa violência não vai prevalecer sobre pessoas que se erguem e resistem. Senhor Maduro, aceite o resultado das eleições e demita-se", afirmou.

“Hoje, honramos María Corina Machado. Prestamos também homenagem a todos os que esperam na escuridão. A todos os que foram presos e torturados, ou que desapareceram. A todos os que continuam a ter esperança. A todos aqueles que em Caracas e noutras cidades da Venezuela são obrigados a sussurrar a língua da liberdade. Que nos oiçam agora. Que percebam que o mundo não se está a afastar. Que a liberdade está cada vez mais perto. E que a Venezuela se tornará pacífica e democrática. Que uma nova era amanheça”, concluiu, antes de chamar a filha da líder da oposição venezuelana para receber a medalha e o diploma do Prémio Nobel da Paz.

Galardoada não chegou a tempo

Horas antes da cerimónia, o Comité Nobel Norueguês confirmava que María Corina Machado não estaria na cerimónia, apesar de ter feito "tudo o que estava ao seu alcance para estar presente". Numa pequena nota, falava numa "viagem em situação de extremo perigo", explicando que "embora não tenha conseguido chegar à cerimónia e aos eventos de hoje, estamos profundamente felizes por confirmar que ela está bem e que estará connosco em Oslo".

E divulgou depois o telefonema em que ela confirmava que não podia estar presente. "Antes de mais, em nome do povo venezuelano, quero agradecer mais uma vez ao comité norueguês do Nobel este imenso reconhecimento da luta do nosso povo pela democracia e pela liberdade. Estamos muito emocionados e honrados, por isso lamento muito informar que não poderei chegar a tempo para a cerimónia, mas estarei em Oslo e a caminho de Oslo neste momento".

A filha de María Corina Machado recebe o Nobel da Paz em nome da mãe.
Onde está María Corina Machado? Oslo à espera da Nobel da Paz

A cerimónia decorre todos os anos a 10 de dezembro, aniversário da morte de Alfred Nobel, em 1896. O evento começou com a atuação do músico venezuelano Danny Ocean, que vive há vários anos nos EUA.

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