“A segurança de Taiwan está profundamente ligada à segurança de toda a região do Indo-Pacífico”
Mário Vasa / Global Imagens

“A segurança de Taiwan está profundamente ligada à segurança de toda a região do Indo-Pacífico”

Investigador no Instituto para a Pesquisa em Defesa Nacional e Segurança de Taiwan participou no Mafra Dialogues, organizado pela autarquia e pelo IPDAL. Domingo I-Kwei Yang conversou com o DN acerca da pressão militar chinesa à ilha, o apoio americano e a vontade taiwanesa de reforçar laços com a Europa.
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Quando os jornais descrevem o Estreito de Taiwan como o local mais perigoso do mundo, isso é realmente verdade? Sente esse risco no seu quotidiano de cidadão taiwanês?
Não acho que seja verdade. Acho que o conflito não está iminente. Acredito que a situação é gerível se fizermos as coisas corretamente, se melhorarmos as nossas capacidades e conseguirmos dissuadir com sucesso os movimentos agressivos da China. E penso que a situação mais grave no Estreito de Taiwan é o constante assédio e a agressão da China na chamada Zona Cinzenta.

Estamos a falar de operações militares da China muito perto do território taiwanês, por mar e pelo ar?
Sim. A agressão na Zona Cinzenta é única e muito difícil de lidar. Contém ações militares, mas está abaixo do limiar de uma guerra real. Portanto, não lhe podemos chamar ato de guerra. Mas as coerções são reais e acontecem todos os dias. Os caças do EPL [Exército Popular de Libertação] da China estão a chegar muito perto das 24 milhas náuticas de Taiwan, assediando, sondando e oprimindo o nosso espaço diário de treino de guerra aérea. Estão a tentar criar uma situação de controlo de facto. E a questão é que a China não está a fazer isto apenas com Taiwan. A China também está a utilizar o assédio ou agressões na Zona Cinzenta com o Japão e também com as Filipinas. Portanto, dois outros atores regionais, e todos enfrentamos os mesmos problemas. Portanto, acreditamos que isto requer uma resistência coletiva, uma verdadeira resistência, para acabar com este tipo de aventureirismo agressivo, para que possamos evitar acidentes.

Mencionou o Japão e as Filipinas e, tal como Taiwan, trata-se de países que mantêm relações próximas com os Estados Unidos, que são o principal parceiro militar. É decisiva a presença militar dos Estados Unidos no Indo-Pacífico para contrabalançar as pretensões da China?
Os Estados Unidos são um parceiro sólido, o mais sólido de todos, porque neste momento são provavelmente o único país que vende armas a Taiwan. E, de acordo com a Lei das Relações com Taiwan, qualquer coisa que aconteça no Estreito de Taiwan será uma grande preocupação para os Estados Unidos. Acreditamos que a segurança de Taiwan está profundamente ligada à segurança de toda a região do Indo-Pacífico, porque se a República Popular da China [RPC] invadisse com sucesso Taiwan, então o Japão, a Coreia do Sul, e até mesmo as Filipinas, nunca mais se sentiriam seguros. Porque isso significaria a que a RPC  controlaria literalmente o Estreito de Miyako e o Canal Bashi. Seria capaz de controlar todos os pontos críticos de estrangulamento e todas as linhas marítimas de comunicações no Indo-Pacífico. E penso que tal seria um passo para a China se tornar literalmente a potência hegemónica na região. Penso que, neste momento, os Estados Unidos não permitirão que isto aconteça.

Historicamente, após a derrota do Kuomintang na Guerra Civil chinesa de 1949, a República da China em Taiwan investiu fortemente nas Forças Armadas. Mas nas últimas décadas é óbvio que deixou de ser possível investir na mesma proporção que a China continental. De qualquer forma, ainda existe capacidade militar de Taiwan para alguma forma de dissuasão da China?
Acreditamos que a dissuasão é possível porque o que estamos a trabalhar agora é na chamada dissuasão pela negação. A dissuasão pela negação significa que tentaremos tornar as operações anfíbias da China mais complexas e imprevisíveis, o que significa verdadeiramente tornar a operação suscetível de falhar. Então, ao fazermos isso, o EPL terá de pensar duas vezes se quiser decidir lançar um ataque. E para mim, e para outros estudiosos e especialistas, não será realmente fácil para o EPL lançar um ataque anfíbio bem-sucedido contra Taiwan.

E quanto à dissuasão diplomática, ou política? Se os líderes taiwaneses, ainda a presidente Tsai Ing-wen e, a partir já de dia 20, o presidente eleito Lai Ching-te, optarem por manter o statu quo  e também preservar a relação económica com o ainda principal parceiro comercial, isso será importante para evitar alguma ação militar por parte da China?
Penso que é obviamente possível que o que pretendamos seja manter o statu quo. Não estamos a provocar a China. Certamente não queremos atacar a China ou puni-la. Queremos apenas que a China se comporte como uma grande potência responsável e não utilize a coerção económica para nos coagir ou para coagir os intervenientes regionais.

Mas a declaração formal de independência continua a ser uma linha vermelha?
Sim, sim.

O Governo de Taiwan não dará esse passo porque sabe que arriscaria um conflito aberto com a China…
Relembro que Taiwan não está submetido ao controlo da China. Temos as nossas próprias eleições, livres. Temos a nossa moeda. E temos as nossas Forças Armadas. Aliás, Taiwan nunca esteve sob o controlo do Partido Comunista Chinês [PCC]. Acho interessante, e gosto de salientá-lo, que quando falamos sobre a China, estamos a falar do PCC. Este é um partido único que controla toda a China, toda a República Popular da China. E Taiwan nunca esteve sob o controlo do PCC.

Mas, historicamente, quando o Kuomintang  estava no poder em Taipé partilhava o mesmo objetivo que o PCC de reunificar a China. E Taiwan, hoje liderado pelo Partido Democrático Progressista [DPP] tem de lidar com esse legado. Até o nome da ilha é República da China.
Sim, é verdade.

Quando pensamos na população taiwanesa, sabemos que existem os aborígenes, um pequeno grupo, e os numerosos descendentes de muitas vagas migratórias oriundas da China, as pessoas que imigraram a partir do século XVII, mas também os continentais que vieram em 1949 no final da Guerra Civil. Quando olhamos para a população de Taiwan, e em termos de abordagem à China, temos pessoas que votam no DPP, que está inclinado à independência, mas os seus presidentes não a proclamam, temos pessoas que votam no Kuomintang, que agora é o principal partido no Parlamento, e há até quem vote num terceiro partido que também é pró-independência, em teoria. A China tenta aproveitar essas diferenças entre a população taiwanesa, sabendo que, como o país é uma democracia, as pessoas podem mudar de opinião e votar num partido diferente. A China tenta interferir na política de Taiwan?
Claro, todos os dias. A China tenta, todos os dias, interferir na sociedade civil de Taiwan. Penso que uma das melhores estratégias da China é dividir para conquistar. É exatamente isso que a China está a fazer, por exemplo, à UE. A China está também a tentar dividir a União Europeia e os Estados Unidos. E a China está a tentar dividir a Europa e a região do Indo-Pacífico…

E tenta dividir os taiwaneses...
A China está a tentar dividir o povo. Temos sido, como cidadãos taiwaneses, bombardeados por inúmeras campanhas de desinformação da China. Penso que um dos problemas mais graves é que a China está a utilizar esta operação de desinformação para tentar espalhar na ilha uma espécie de derrotismo, de que não importa o que façamos, não importa o quanto tentemos, no final das contas, Taiwan estará isolada. Ninguém nos ajudará. Os Estados Unidos vão-nos abandonar. Portanto, neste cenário, você deveria simplesmente desistir. Você deveria simplesmente capitular diante da China. E você nem quer lutar porque quando você luta, você terá baixas. E porque razão deveria suportar esse tipo de baixas? Portanto, esse tipo de derrotismo, se acontecesse, prejudicaria muito a nossa vontade de lutar. E isso não seria bom para a nossa segurança e defesa nacional.

Usam também a economia para pressionar a sociedade taiwanesa?
Sim, acho que a China sempre gostou de usar a coerção económica para intimidar o povo taiwanês. Mas, se realmente olharmos para as estatísticas, na minha opinião, é a China que realmente depende de Taiwan. Porque se observarmos os 20 principais itens que Taiwan exporta para a China, muitos deles são chips  semicondutores ou componentes mecânicos avançados. Portanto, exportamos esses componentes críticos para a China. A China compra esses componentes críticos, monta-os nos seus produtos e exporta para o mundo. Portanto, quando olhamos para cada momento em que a China utiliza a coerção económica para atacar Taiwan, verificamos que se trata sempre de produtos agrícolas, não tecnologia. E os produtos agrícolas representam apenas uma parcela mínima da nossa economia total.

Evita sanções à alta tecnologia.
Porque isso também prejudicará a economia chinesa.

Recentemente, o antigo presidente Ma Ying-jeou visitou a China. E creio que o fez até contra a opinião do Kuomintang. Foi uma atitude pessoal de um ex-político, ou  pensa que na sociedade taiwanesa, mesmo que a grande maioria tenha orgulho de ser taiwanês, orgulho na democracia, ainda existem setores da opinião pública que consideram que talvez num futuro distante, algum tipo de acordo com a China para resolver o problema da separação de 1949 ainda será possível. Ainda existe essa mentalidade em parte da população?
Acho que não existe. Penso que o gesto do presidente Ma foi pessoal. Há uma pesquisa célebre em Taiwan conduzida pelas universidades nacionais sobre políticas de identidade. E se analisar essas pesquisas, descobrirá que a maioria dos taiwaneses se reconhecerá como taiwanês. Aqueles que se reconhecem apenas como chineses são menos de 2%. Acredito que alguns políticos ainda pensem que a estratégia para alcançar a paz entre os dois lados do Estreito de Taiwan depende da bondade da China, mas discordo desse tipo de ideia. Acho que a paz só pode ser alcançada pela demonstração de força. Acho que devemos realmente desenvolver as nossas capacidades em vez de contar com a bondade do PCC. Afinal, porque é que o PCC mudaria?

Mencionou muito o PCC. Se o regime comunista cair um dia na China e existir um tipo diferente de regime, haverá um impacto imediato em Taiwan?
Acho que esse tipo de teoria era muito popular nos Anos 90, e também no início dos Anos 2000. Havia uma teoria esmagadora no mundo, especialmente nos Estados Unidos, de que a China, ao tornar-se rica, com uma bourgeoisie cada vez maior, finalmente tornar-se-ia um regime democrático. É por isso que temos um livro famoso chamado O Fim da História, de Francis Fukuyama. Previa o fim da história. O regime democrático tornar-se-ia a derradeira escolha dos humanos.

Está a dizer que com Xi Jinping a história está a começar de novo, pelo menos na China?
É impossível hoje dizer que a China caminha para a democracia. Porque o que vemos, a globalização, as interdependências comerciais, não se traduzem numa China mais liberal e aberta. O que a China está a fazer é intensificar o controlo. A China tornou-se mais assertiva. A China está a tentar mudar o statu quo.

Mas olhando para os diferentes lados do Estreito, para a China continental e para Taiwan, os taiwaneses são também a prova viva de que as pessoas culturalmente chinesas podem construir uma democracia. O sucesso da  ilha pode ser uma espécie de inspiração para  a China continental ou a diferença de tamanho, de população, até histórica, não permite tirar ilações?
Penso que algumas pessoas em Taiwan, algumas pessoas mais velhas, ainda podem ter esta ilusão de que a China poderá tornar-se um regime democrático. Mas sou professor em universidades. Nas minhas aulas, pergunto muitas vezes temas aos meus alunos, entre eles muitos estudantes internacionais, da Europa, do Sudeste Asiático. Uma das nossas questões para discussão é: a China vai tornar-se um país democrático? E ao longo de todos estes anos, a resposta é não. E quando olhamos para as últimas eleições em Taiwan, dificilmente encontrará algum candidato que concorra à presidência, ou a uma câmara,  que fale sobre a ideia de uma reunificação pacífica. É impossível.

Nem o Kuomintang?
É impossível falar em reunificação pacífica. É impossível falar sobre isso porque ninguém vai comprar isso. Ninguém vai acreditar nisso. Mesmo de forma pacífica, não creio que a maioria do povo de Taiwan queira reunir-se com a China.

Sobre Taiwan e a Europa.  A ilha hoje não tem relações oficiais com países europeus, exceto, se quisermos, o Vaticano. Mas mantém fortes laços económicos. E há muitas vozes na Europa que apoiam Taiwan, pelo menos a manutenção do statu quo, desejando evitar qualquer tipo de guerra com a China. Será a Europa, de certa forma,  importante para Taiwan  ou a ilha depende dos Estados Unidos e de uma espécie de solidariedade antichinesa no Indo-Pacífico?
Penso que a Europa é importante para Taiwan. Apesar de não ter relação diplomática formal, a ilha partilha muitos interesses com os parceiros europeus e tem cooperação profunda com muitos países. Deixe-me dar-lhe um exemplo. Neste momento, em Taiwan, levamos realmente a sério a construção da nossa resiliência em termos de comunicações. E estamos a trabalhar com o Reino Unido e alguns outros atores europeus sobre a cooperação em tecnologia de satélite. E não se trata apenas de cooperação via satélite. Tentamos também expandir a cooperação em energia verde, na saúde e também no comércio. Assim, os parceiros europeus são parceiros indispensáveis ​ para Taiwan, e não apenas porque defendem a importância da liberdade de navegação no Estreito de Taiwan,  mas também porque acredito que cada vez mais cidadãos europeus estão conscientes do facto de que não podem ser totalmente dependentes da China. Porque a China gosta de usar fricções e coerções económicas em troca de concessões. Veja o que aconteceu com a Lituânia. Veja o que aconteceu com  empresas como a H&M. Foi sancionada pela China apenas porque algumas pessoas da H&M comentaram sobre a situação dos uigures no Xinjiang.

A China continua a exercer pressão sobre os países europeus contra as relações com Taiwan. Mesmo o reforço de laços económicos e culturais é malvisto pela China?
Sim. Por isso penso que é muito importante que os parceiros europeus saibam que devem estar livres da coerção da China. Quero dizer, as intimidações da China não deveriam forçá-los a não ter cooperação ou relacionamento com Taiwan. E uma coisa que gostaria de salientar - isto é muito importante - é que a China gosta de distorcer o significado da Resolução 2758 da ONU como se esta tivesse determinado o estatuto internacional de Taiwan, o que não é verdade. A Resolução 2758 da ONU trata apenas do representante de Chiang Kai-shek, que deveria deixar de representar a China na ONU. Não disse nada sobre o estatuto de Taiwan. E não exclui a participação de Taiwan na ONU e o relacionamento com outros países.

A minha última pergunta é, aliás, sobre Chiang Kai-shek. Sei que há taiwaneses que pedem para retirar as estátuas ainda existentes do líder nacionalista derrotado por Mao Tsé-tung e que se refugiou em Taiwan. É difícil lidar com o legado de Chiang, que continua a ter um memorial em Taipé?
Taiwan é uma sociedade democrática. Temos todos os tipos de opiniões. Algumas pessoas têm esta memória negativa porque foram perseguidas quando Chiang Kai-shek era presidente. Então, é claro, quando veem as estátuas  terão sentimentos contraditórios. Mas acredito que também há algumas pessoas que pensam que não há problema em manter as estátuas. Não é algo que esteja no topo da agenda agora. Não é algo muito sério. De vez em quando, as pessoas levantam esse problema. Acho que, no final das contas, tudo depende das pessoas. Se a maioria das pessoas pensar que nos devemos livrar das estátuas, acho que essas estátuas desaparecerão. Se a maioria das pessoas não conseguir chegar a um consenso, então estas questões continuarão. Porque é assim que as democracias funcionam.

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