“A ONU é um legado da Segunda Guerra Mundial que devemos manter e reforçar”

Uma antiga figura de topo da NATO disse à BBC que estes 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial são mais um funeral do que uma celebração. Acha que temos motivos para celebrar ou lamentar que a realidade trazida pelo final da guerra pode estar a desaparecer?Há motivos para celebrar, porque foi o final de uma guerra que causou um sofrimento indizível dada a escala que teve a Segunda Guerra Mundial. Mas mais do que o sentimento, ou a festa, ou o lamento pela situação em que estamos 80 anos depois, acho que é uma oportunidade para refletir, para analisar, para pensarmos, 80 anos depois, o que se passou ao longo destes 80 anos e o que temos feito do legado do final da Segunda Guerra Mundial e, por isso, é essencialmente esta oportunidade de reflexão que acho que não devemos desperdiçar. Mesmo na Alemanha, para quem obviamente não há razões para celebrar este dia, para eles o dia 8 de maio significa o Dia da Capitulação, quatro anos depois do final da guerra aprovaram a lei fundamental e que marca a refundação da Alemanha do pós-guerra. E, por isso, acho que, se até mesmo os alemães quiseram assinalar a data, acho que devemos todos, independentemente do estado de alma que nos liga ao final da Segunda Guerra Mundial, não perder a oportunidade de refletir e de analisar a situação em que nos encontramos e de refletir sobre estes 80 anos em retrospetiva.Que legados nos deixou o final da Segunda Guerra Mundial e como é que acha que o mundo tem gerido esse legado?Eu salientaria logo os Direitos Humanos, que foram uma conquista do final da Segunda Guerra Mundial. Foi três anos depois do final da Segunda Guerra Mundial que foi adotada, em Paris, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e que, a partir daí, nasceram uma série de instrumentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos que depois perpassaram para as nossas Constituições. Alguns dos Estados saídos da guerra adotaram Constituições logo no pós-guerra, o caso da Itália, da França, da Alemanha, e nessas Constituições absorveram esse legado dos Direitos Humanos de uma forma muito clara e expressiva. No nosso caso foi só nos anos 70, e no caso dos países de Leste só nos anos 90. São as três vagas do constitucionalismo europeu, mas todo ele tributário deste legado da valorização dos Direitos Humanos.Um desses legados são as Nações Unidas, cuja utilidade tem sido questionada. Acha que a ONU ainda faz sentido?A ONU é necessária. É necessário um fórum de união de todos os Estados do mundo onde se tente dialogar e resolver os diferendos por uma via pacífica e, por isso, acho que sim, acho que tem todo o sentido. A ONU tem mostrado alguma paralisia perante grandes crises ao longo destes anos, o tema da reforma do Conselho de Segurança é um tema permanente quase, por causa dos membros permanentes e do direito de veto. É claro que a ONU precisa de uma reforma, mas precisa de uma reforma porque é necessária. Acho que é um legado da Segunda Guerra Mundial que devemos manter e reforçar, especialmente no período em que estamos.O rescaldo da guerra também nos deu a NATO, que também vive tempos conturbados. Que futuro é que vê para a NATO?Não consigo prever o futuro, como é que a NATO se reorganizará no novo contexto de relações entre os Estados Unidos, o Canadá e a Europa. A NATO já passou por um período de redefinição de objetivos, na viragem entre a década de 80 e a década de 90, com a queda do Muro do Berlim, e aí viveu um momento cheio de promessas em que supostamente perderia a sua razão de ser pela adesão dos países do Pacto de Varsóvia aos mesmos objetivos dos restantes países europeus. Hoje a situação é mais desafiante, mas não consigo prever o futuro da NATO. Certamente que terá de se articular também com outras entidades, nomeadamente com a Defesa europeia, que terá de ser desenvolvida e articulada. Vamos aguardar. Teremos a Cimeira da NATO no próximo mês e, por isso, toda essa situação terá certamente desenvolvimentos aos quais devemos estar atentos.Desde a Segunda Guerra Mundial que os Estados Unidos têm sido vistos pela Europa como um aliado, mas com Donald Trump isso acontece cada vez menos, como demonstram várias sondagens. Estamos a falar do fim de uma era, mesmo em termos de Direitos Humanos, que são a sua especialidade?A ideia de que estamos no fim de uma era é muito clara e muito evidente, e que os Estados Unidos, neste momento, não se apresentam nem ao Canadá, nem à Europa como um parceiro fiável também me parece muito claro, resta saber se se vão tornar uma ameaça ou se, pelo contrário, haverá apenas um deslaçar desta união, e que até pode ser temporário. Quanto aos Direitos Humanos continuamos a dispor dos mesmos instrumentos e a depender de nós a sua efetivação ou não.80 anos depois do que se passou na Segunda Guerra Mundial as pessoas estão a perder essa noção de Direitos Humanos?Eu acho que os Direitos Humanos por definição estão sempre em risco, em todos os tempos, e que a barbárie e a ameaça mais profunda aos Direitos Humanos está sempre presente, por isso não diria que estamos a perder. Diria que estamos mais conscientes do que nunca desse risco de desaparecimento e de afetação dos Direitos Humanos, das maneiras mais bárbaras, mais cruéis, com que o tempo vivido há 80 anos nos confrontou de um modo especial. E, por isso, acho que se os Direitos Humanos existem e têm razão de ser é exatamente para mantermos essa consciência presente na análise que fazemos da forma como se vão resolvendo problemas concretos, muitas vezes com recurso a uma crueldade que não é justificada e que contraria o compromisso básico com os Direitos Humanos, tal como eles nos foram legados no pós-guerra.Um caso concreto relativo a Direitos Humanos é a questão da guerra entre o Israel e o Hamas, na qual a palavra Holocausto voltou a ser usada, tanto por um lado, como pelo outro. Estamos a esquecer-nos do peso da História?Acho que nós, na análise do que se passou nos últimos 80 anos, devemos evitar olhar para o passado como se ele tivesse sido uma sucessão de eventos fiéis ao legado originário do pós-guerra e olhar para a realidade hoje como se ela fosse a pior das realidades com que alguma vez a Humanidade foi confrontada nos últimos 80 anos. Em relação à situação no Médio Oriente, que é uma situação muito grave e que é uma das sequelas do pós-guerra, devemos manter esse olhar marcado pela necessidade de salvaguardar acima de tudo os Direitos Humanos e a dignidade da pessoa humana.E acha que isso está a acontecer nesta altura?Não, claramente que não.Como especialista em Direitos Humanos, como é que se pode tentar mudar esta situação sem ser pela guerra?É exatamente isso que nós vamos tentar discutir amanhã [hoje] na Universidade do Minho, no evento que vamos realizar e que tem esse pano fundo: como é que, neste contexto em que estamos todos um bocadinho aturdidos pela sucessão de acontecimentos dos últimos cinco anos, com a pandemia, com a invasão da Ucrânia, com o reacender do conflito no Médio Oriente, nos últimos dias com o reacender do conflito entre a Índia e o Paquistão, que ontem [terça-feira] teve um desenvolvimento ao início da noite, tudo isto nos interpela e nos deve levar a pensar naquilo que foi a grande preocupação de todas as pessoas no pós-guerra, como garantir que nunca mais estaremos numa posição semelhante àquela que se viveu entre 39 e 45.A invasão da Ucrânia por parte da Rússia é uma prova de que Moscovo foi um aliado ocasional na Segunda Guerra Mundial, com uma agenda muito própria, ou são apenas as ambições de Putin?Certamente que foi um aliado ocasional, integrou a Aliança em circunstâncias muito peculiares de necessidade de Defesa, e que tem uma agenda própria viu-se imediatamente no pós-guerra com o início da Guerra Fria, por isso não é novidade a circunstância de ter uma agenda própria.As guerras no Medio Oriente e na Ucrânia podem levar a uma maior preocupação pelos Direitos Humanos?Espero que sim, é esse o meu trabalho. Agora, que os Direitos Humanos não estão a viver um bom momento parece-me uma evidência. Mas é mais importante do que nunca mantê-los na agenda e mantê-los no horizonte.E acha que há um interesse dos Estados nisso, numa altura em que, por exemplo, a Europa está a rearmar-se, os Estados Unidos estão numa senda isolacionista, há guerra no Medio Oriente e na Ucrânia, além da Índia e do Paquistão de que falou?Os Direitos Humanos não servem necessariamente os interesses dos Estados em todos os momentos. Eles são, aliás, um travão às pretensões dos Estados no uso da força e nos possíveis abusos dos seus poderes e, por isso, são sempre um contrapoder, e é essa a função que têm mesmo de desempenhar, especialmente em tempos como aqueles que estamos a viver.Como é que os Direitos Humanos podem fazer face ao poder dos Estados, dos governos?Não é fazer face, é obrigar a que seja uma consciência que crie limites à atuação dos Estados, à atuação do poder. E por isso é essencialmente nessa função de limite inultrapassável à ação do poder que importa mantê-los vivos e falar deles, e refletir à luz dos Direitos Humanos e à luz do progresso no desenvolvimento dos Direitos Humanos que se verificaram nos últimos 80 anos, manter esse olhar crítico sobre a atuação dos Estados e sobre a forma como muitas vezes se afastam dos compromissos que assumiram, quer em termos internacionais, quer em termos regionais, no caso da Europa, quer em termos nacionais, nas respetivas Constituições e nos catálogos de direitos fundamentais que acolhem.Fala dos Direitos Humanos como parecendo ser uma entidade abstrata, como é que se pode fazer isso? Por exemplo, através dos tribunais, como se vê nos Estados Unidos, a tentarem bloquear deportações e outras medidas da Casa Branca?Uma via possível para garantir a proteção dos Direitos Humanos, em tempos mais conturbados, é o recurso aos tribunais, e isso é um aspeto importante e essencial também desse legado do pós-guerra. Aliás, foi a seguir ao final da Segunda Guerra Mundial que, na Europa, se instituíram nas Constituições do pós-guerra os Tribunais Constitucionais, precisamente como órgãos que garantem que, mesmo em relação às maiorias democraticamente legitimadas, estas se mantêm, nas suas decisões, respeitadoras do legado constitucional, nomeadamente dos Direitos Humanos. Por isso, os tribunais são, de facto, uma peça-chave e reforçada na arquitetura constitucional do pós-guerra.A invasão de um país, o crescimento da extrema-direita, crise económica, o falhanço da Liga das Nações, foram algumas das causas que levaram à Segunda Guerra Mundial e a cuja repetição, de uma forma ou outra, estamos a assistir. Acredita que a História é cíclica e poderemos estar à beira de uma nova guerra à escala global?Acho que não e, acima de tudo, espero que não. Agora, nenhum de nós sabe exatamente, nesta cascata de acontecimentos com que temos sido confrontados nos últimos tempos, onde é que ela nos vai levar. E, como digo, ainda não tem 24 horas o reacender de um conflito entre duas potências nucleares, e isso obviamente é uma coisa que nos deve preocupar muito.A data do final da Segunda Guerra Mundial na Europa não é celebrada em Portugal, no entanto a Escola de Direito da Universidade do Minho, como já referiu, decidiu marcar esses 80 anos com uma conferência da qual é coordenadora científica. Porquê organizar esta conferência?Surgiu de uma forma muito espontânea. No dia 27 de janeiro deste ano estava a assistir às cerimónias do Dia da Memória das Vítimas do Holocausto e aos 80 anos da libertação do Campo de Auschwitz e achei que as universidades tinham o dever de não passar ao lado de um acontecimento desta importância e de promover e organizar aquilo que nós sabemos fazer, que é trabalho, reflexão, troca de ideias entre diversas áreas de saber. Além do mais tinha um dever acrescido, porque tenho, neste momento, a responsabilidade da coordenação de Mestrado de Direitos Humanos na Universidade do Minho, e que, por isso, tinha de pôr mãos à obra e não deixar passar, já que passou o dia 27 de janeiro, não deixar passar os 80 anos do final da Segunda Guerra Mundial. E foi muito por essa sensação de necessidade e de urgência que decidimos organizar esta jornada de reflexão, que se realiza esta quinta-feira..António Costa defende que transformação na Europa devido à guerra na Ucrânia não tem retorno

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