"A guerra na Ucrânia desviou as atenções da Ásia-Pacífico, mas a situação geopolítica continua volátil"
Investigador do Instituto do Oriente (ISCSP-Univ. Lisboa), Luís Cunha analisa o modo como a guerra na Ucrânia afeta a China e as relações desta com a Rússia e a América.
É apenas o fator nuclear que impede uma guerra aberta entre NATO e Rússia depois desta ter invadido a Ucrânia?
Ao invocar o poder nuclear, o jogador de xadrez Putin terá pretendido avançar, precipitadamente, para um xeque-mate à NATO. A utilização preventiva das armas nucleares táticas faz parte da doutrina russa. No entanto, não é líquido que um confronto entre membros da NATO e a Rússia implicasse armas nucleares, táticas ou mesmo estratégicas. Mas atendendo ao perfil do líder russo e ao modus operandi do seu exército, que recorre a armas proibidas pela Convenção de Genebra, entre as quais bombas termobáricas - só as nucleares são mais potentes -, todos os cenários seriam possíveis. Há 60 anos, aquando da crise dos mísseis soviéticos em Cuba, o mundo esteve muito mais perto de uma guerra nuclear do que se imagina. No final, Kennedy e Khrushchev provaram ser líderes racionais. A racionalidade de Putin, a existir, será de outro tipo. A fina linha entre a paz e a guerra voltou a estreitar-se.
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China pode ser mediadora no conflito?
A invasão da Ucrânia por parte da Rússia, enquanto potência desafiadora da ordem internacional, representa um enorme teste à capacidade de resposta do Ocidente, mas também à relação com a China, principal parceira estratégica. A China está a mediar o conflito, na medida em que, por um lado, a Rússia a colocou numa posição incómoda, enquanto mais importante parceira estratégica; por outro, a China também tem muito a perder com uma possível crise global e até na sua credibilidade internacional. Xi Jinping tem falado com Putin, Macron e Scholz. Significativas poderão ser as conversações bilaterais com os EUA. A invasão da Ucrânia provoca o reordenamento das relações internacionais, colocando a China no papel que está habituada a desempenhar: o de ser tudo para todos. A abstenção em condenar a invasão da Ucrânia na votação da ONU, por exemplo, foi interpretada como uma vitória diplomática tanto pelo Ocidente como pela Rússia. Evitar o antagonismo frontal com os Estados Unidos, numa ocasião crítica para a política mundial e para a economia chinesa, será a prioridade máxima para Pequim. A neutralidade colaborante cumpre os critérios mínimos. A China é a maior parceira comercial da Rússia e da Ucrânia. A cooperação militar com os dois países é intensa.
China sai ganhadora desta crise, por ver os EUA a mudar foco do pacífico para o Atlântico e a Rússia só ter agora o vizinho do Leste como parceiro, ou até pode perder se houver uma crise global?
Depende da evolução dos acontecimentos, mas é um cenário plausível. Biden estava focado no confronto com a China enquanto rival sistémico e mobilizou a UE, a Austrália e o Reino Unido. A nova frente aberta pela Rússia veio reordenar e complicar as prioridades estratégicas dos EUA. Por outro lado, a Rússia arrastou a China para uma posição indesejada, mas potencialmente vantajosa. Em curto espaço de tempo, Pequim observa o seu maior rival estratégico a sair debilitado do Afeganistão e o seu maior parceiro estratégico em rota autodestrutiva e cada vez mais dependente de Pequim.
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"Em curto espaço de tempo Pequim observa o seu maior rival estratégico a sair debilitado do Afeganistão e o seu maior parceiro estratégico em rota autodestrutiva e cada vez mais dependente de Pequim."
A China pode tirar desta guerra e das reações que provocou conclusões para estratégia em relação a Taiwan?
É muito provável. Uma espécie de tubo de ensaio para opções futuras. A guerra na Ucrânia desviou as atenções da Ásia-Pacífico, mas a situação geopolítica continua volátil. A China tem várias disputas territoriais na região, ao mesmo tempo que acusa os EUA de quererem criar uma versão asiática da NATO. O antigo secretário de Estado, Mike Pompeo, afirmou em Taiwan que está na altura de os EUA reconhecerem a ilha como um país livre e soberano. Pequim avalia seriamente a reação da comunidade internacional à crise ucraniana. Em todo o caso, recorde-se que Pequim nunca renunciou ao possível uso da força para forçar a reunificação com Taiwan, que não tem representação na ONU. Washington terá agora que redefinir a ambiguidade estratégica face a Taiwan, sendo presumível que reforce a capacidade militar da ilha ao abrigo do Taiwan Relations Act, comprometendo-se a defender a ilha e a fornecer equipamento militar mais moderno.
Mesmo com este braço de ferro EUA-Rússia a relembrar a Guerra Fria, a supremacia mundial vai continuar a ser disputada por uma China em ascensão e uma América a desmentir que está decadente?
Deverá consolidar a rivalidade estratégica entre as duas potências. O Ocidente despertou de uma relativa atrofia estratégica e o rearmamento vai estar nas agendas de muitos países. A NATO deverá rever o seu próximo conceito estratégico e a UE a sua bússola estratégica. O azimute estava mais direcionado para a China, mas agora tudo se alterou. Os resultados do próximo Congresso do PCC também serão objeto de leitura atenta. Pequim apoia a autonomia securitária da UE, desde que afastada dos EUA. A China e a Rússia querem alterar o modo de governação global, estabelecendo regras próprias. Mas Pequim só apoiará Moscovo na medida em que seja possível evitar os efeitos tóxicos da relação estratégica. A China revelou-se assertiva e a Rússia agressiva. Em todo o caso, a iniciativa estratégica passou a estar do lado das potências desafiantes.
leonidio.ferreira@dn.pt
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