Duas guerras, alargamento do espaço comunitário, desequilíbrios políticos e económicos em França e na Alemanha, necessidade de reindustrialização e ausência de autonomia estratégica em defesa. Estes são horizontes projetados para 2025 que a União Europeia (UE) terá de gerir, segundo os politólogos Diogo Noivo e Henrique Burnay e os antigos diplomatas António Martins da Cruz e Francisco Seixas da Costa, com quem o DN falou sobre estes temas. “A Europa precisa dos Estados Unidos para a sua defesa e segurança”, afirma Martins da Cruz, elencando os desafios externos para a UE no próximo ano, com destaque para a Ucrânia, em várias dimensões. E a guerra é só uma delas.Desde o dia 24 de fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, a Europa teve de enfrentar a ideia de que as necessidades energéticas têm de mudar de paradigma, com os vários bloqueios que surgiram aos combustíveis fósseis vindos da Rússia. Partindo desta ideia, Martins da Cruz ressalva que “a Ucrânia, apesar de estar em guerra com a Rússia, cobra 800 milhões de dólares por ano à Rússia para deixar atravessar os gasodutos russos no seu território. E a Ucrânia não quer renovar esse contrato”. O que levou ao fecho da passagem do gás russo a 1 de janeiro.Para além disto, a Europa, perante este conflito e o do Médio Oriente, agravado em outubro de 2023, teve também de repensar a indústria da defesa, que, há quase três anos, tem passado pelo reforço da capacidade bélica dos Estados-membros, que ainda têm de obedecer a compromissos internacionais, como os assumidos no âmbito da NATO. Por isso, Martins da Cruz lembra que em 2025 “vai ser preciso cumprir não só os 2% do PIB em defesa europeia”, definidos em 2014 pelos Estados Unidos (EUA), mas ir mais longe, já que, “a pedido do Secretário-Geral da NATO [Jens Stoltenberg], já estão a ponderar que vai ser preciso chegar aos 3% do PIB em defesa”. Para além disto, continua o também antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, o presidente eleito dos EUA, o regressado Donald Trump, “já disse que podem ser 3,5% a pensar nos 5%”.De acordo com as contas de Martins da Cruz, “Portugal gasta hoje em defesa cerca de 2,4 mil milhões de euros. Que é 1,4% do nosso PIB. 3% seriam 8 mil milhões de euros”, aponta, alertando que, com este investimento, esta área seria a “terceira ou quarta”com “maior verba no Orçamento [do Estado], depois da educação, da saúde e talvez da habitação”.O politólogo Henrique Burnay, vê este tema como um “problema geopolítico” com que “a Europa tem que lidar, sobretudo agora que os EUA estão menos disponíveis para arcar com a segurança da Europa”, ainda que nunca o tenham feito “sozinhos” e apesar de assumirem “uma quota parte bastante grande”.Por outro lado, mesmo que surja uma paz resultante de uma negociação, explica o investigador em ciência política, a Europa terá de garantir “que essa paz não fará a Rússia pensar que pode ir fazer o mesmo noutro lugar, lá nos Bálticos, para não pensar na Polónia”.O enredo da geopolítica internacional, na perspetiva do antigo diplomata Francisco Seixas da Costa, fica mais complexo com a administração Trump, porque com o seu antecessor, Joe Biden, a “agenda de segurança” norte-americana identificava-se com “a perspetiva antirrussa que prevalece e progride dentro da UE”.“Essa agenda é mobilizada pela Polónia e pelos países bálticos, com os estados nórdicos numa segunda linha de empenhamento”, explica ao DN Seixas da Costa, acrescentando que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, desenhou o órgão que dirige “numa perspetiva de confronto com a Rússia. Uma América de Biden ou [Kamala] Harris seriam o parceiro ideal para a Europa de Von der Leyen, na frente ucraniana. A América de Trump é, por ora, no domínio da segurança, uma imensa incógnita.” Ameaças económicasJá numa perspetiva interna do velho continente, a Ucrânia ainda contribui para outros desafios, como o alargamento do espaço comunitário a novos estados, que resultará em novas pressões.“Há 10 candidatos a bater à porta”, retoma António Martins da Cruz, defendendo que “há um que não entra: a Turquia”. Tenta desde 1999, sem sucesso. “Dos outros nove candidatos, há um que está em suspenso, que é a Geórgia”, que “pode entrar a qualquer altura”, explica, alertando que, “se entrarem os nove, a União Europeia passa a ter 36 membros, 19 dos quais são do centro e do leste da Europa”. Esta concretização, continua Martins da Cruz, levaria a que “o centro de gravidade política da Europa” passasse “para o centro e para o leste”, empurrando Portugal para uma posição mais periférica, o que, na análise do antigo diplomata, levaria a que o sul da Europa deixasse de ser prioritário. “E isso vai refletir-se não só na política, mas nos fundos estruturais. Todos os países que vão entrar têm PIB per capita menores que Portugal. Ou seja, se se mantiver a política da coesão - o que não é certo face aos problemas orçamentais -, esta irá beneficiar os que vão entrar agora e não Portugal. Portanto, pela primeira vez desde 1986 [ano da adesão de Portugal à CEE], acabam-se em grande expressão os fundos estruturais de que Portugal beneficia”, como o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) ou o 2030.De toda esta análise de Martins da Cruz, sobressaem ainda dois problemas, ambos no plano económico: a desindustrialização da Europa e o orçamento da UE, que, garante, “não chega”.Sobre o primeiro, explica que, para além das necessárias importações de energia, que resultam do conflito na Ucrânia e que tornam este bem mais caro, a Alemanha e a França, “que são os dois principais motores económicos da UE, “estão em crise económica e política”.“Mas isto ainda é mais grave para nós, Portugal, porque a França e a Alemanha são os nossos segundo e terceiro mercado de exportação”, adverte.Também o politólogo Diogo Noivo destaca em lugar cimeiro dos desafios da UE a reindustrialização, e para fundamentar a sua perspetiva parte dos relatórios escritos pelos antigos primeiros-ministros italianos Enrico Letta e Mario Draghi, que se centram no mercado único e em “desafios mais amplos”, aponta.A reindustrialização, para o investigador, apresenta-se como um desafio desde logo pela presença de duas fortes concorrências: China e Estados Unidos.Em relação ao gigante asiático, Diogo Noivo encara como “uma das frentes desta batalha geopolítica” o setor automóvel, que “na Alemanha está a passar por uma crise seríssima”, e em Itália “já houve interrupção da produção”, por conta da “concorrência das marcas chinesas”. Tudo isto, continua o investigador, decorre num “setor de excelência do espaço europeu e de grandes economias, como a alemã e a italiana”. “A Europa claramente perdeu vantagem competitiva e está agora a sofrer de maneira, a meu ver, muito séria esses custos da concorrência chinesa”, afirma.Sobre os relatórios Letta e Draghi, Henrique Burnay já os vê mais num tom prescritivo e teórico. “Aquilo é muito mais fácil de dizer ou escrever do que pôr em prática, antes de mais porque aquele relatório sugere uma quantidade de coisas sobre as quais é difícil pôr os estados membros de acordo”, afirma, exemplificando: “Todos elogiam muito o relatório, até falar sobre coisas que os prejudicam, porque quando o relatório defende coisas sobre o sistema bancário ou financeiro que o Luxemburgo não gosta, o Luxemburgo já não acha boa ideia o relatório, ou quando defende mais investimento público europeu, os nórdicos, os frugais, não gostam.”Com isto, Henrique Burnay classifica o relatório Draghi mais como “uma lista de problemas, do que propriamente um guião para os resolver”.A “arma secreta de Portugal”O DN perguntou aos quatro especialista em política europeia qual é o papel do atual presidente do Conselho Europeu, António Costa, no meio deste intrincado labirinto geopolítico, e não houve um consenso.Para Diogo Noivo, António Costa é um mediador sem “a prerrogativa de definir a agenda executiva do espaço europeu”. “Quem realmente define o futuro da Europa são os governos europeus”, conclui.Também Henrique Burnay não acha que a Europa “vá ser governada a partir do presidente do Conselho Europeu”, mas vê o antigo primeiro-ministro português com “um papel muito importante em dois ou três aspetos”: vai reforçar o peso dos socialistas no Conselho Europeu e, para corresponder à esperança que os Estados-membros depositam nele, de acordo com o investigador, poderá pôr um “travão no processo de poder que a presidente da Comissão Europeia tem”. Seixas da Costa também reserva alguma esperança na angariação de poder de António Costa para “afrontar a verdadeira subversão dos tratados que Ursula von der Leyen promoveu, cavalgando a Covid e a Guerra na Ucrânia”. Para o antigo diplomata, “ser alemã e contar com uma sólida maioria conservadora na Europa permitiu-lhe secundarizar o Conselho de Ministros, onde os dois principais atores - Alemanha e França - estão mergulhados em crises políticas internas que limitam a sua influência. Von der Leyen fez uma aliança de oportunidade com um poder polaco que recuperou o estatuto democrático, cooptou o oportunismo da extrema-direita de Meloni e até se deu ao luxo de dar um ‘rebuçado’ aos socialistas, promovendo a candidata espanhola a uma vice-presidência”. Face a esta análise, Seixas da Costa deixa uma interrogação e uma potencial resposta: “Acomodar-se-á António Costa a este estado de coisas, que confronta os tratados? Se António Costa puder vir a ultrapassar Ursula von del Leyen, tornando-se no interlocutor europeu de Trump, salvaria a União Europeia da subversão institucional em que esta caiu.”Para Martins da Cruz, António Costa revela-se “a arma secreta de Portugal na Europa”, porque, “mantendo a independência” necessária para desempenhar o seu papel, “pode ajudar Portugal de várias maneiras”, como ter em conta “os interesses dos países do sul da Europa na elaboração das agendas” e “das conclusões do Conselho Europeu para o futuro”.Mas, no que diz respeito a projeções para o futuro, Martins da Cruz também atribui a António Costa “dois objetivos próximos”: deve viajar a Washington e Pequim. “Por esta ordem”, sublinha o antigo diplomata, lembrando que o presidente do Conselho Europeu deve dialogar com Trump “depois do dia 20 de Janeiro”, quando o presidente norte-americano eleito toma posse, e a seguir, “ir a Pequim, sabendo aquilo que Washington quer. Porque só assim é que se pode definir qual é o papel da Europa.”