Kiev acusa EUA de alimentar o apetite de Putin

Ao fim de cinco horas de um encontro em Riade, os Estados Unidos e a Rússia chegaram a um acordo de princípio para restabelecer as relações diplomáticas, e que prevê negócios e investimentos conjuntos, uma vez selado um acordo de paz relativo à Ucrânia. A reunião decorreu sob os auspícios do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman - ostracizado pela Administração Biden devido ao assassínio do ativista Jamal Kashoggi e agora recuperado pela Administração Trump. Um sinal, mais um, de que para a Casa Branca está chegada a hora de Vladimir Putin ser readmitido no concerto das nações, o que deixa Kiev alarmada. Um alto funcionário ucraniano disse que as negociações dos norte-americanos com a Rússia sem a participação da Ucrânia e dos europeus só vão “alimentar o apetite de Putin e a sua confiança de que ele vai ganhar e de que a América vai perder”.Para Moscovo, o mais importante da reunião é “começar uma normalização real de relações com Washington”, disse o conselheiro do Kremlin Yuri Ushakov, presente na capital saudita além do ministro dos Negócios Estrangeiros Sergei Lavrov e o diretor do fundo soberano Kirill Dmitriev. Como se estivesse num encontro económico e nada se tivesse passado nos últimos anos, este disse que Moscovo apresentou propostas a Washington para cooperarem nos domínios da energia e das trocas comerciais e mostrou-se otimista quanto à possibilidade de serem assinados acordos dentro de meses. “O mundo inteiro está a observar se os Estados Unidos e a Rússia conseguem melhorar as suas relações. Isso ajudará a realizar um grande número de tarefas e problemas globais que o mundo enfrenta atualmente”, disse à russa Interfax. .Os quatro pontos do acordo Segundo a porta-voz do Departamento de Estado norte-americano Tammy Bruce, as partes concordaram em: estabelecer um mecanismo de consulta para normalizar as relações bilaterais e as missões diplomáticas; criar equipas de alto nível para pôr termo à guerra na Ucrânia “o mais rapidamente possível, de uma forma duradoura, sustentável e aceitável para todas as partes”; explorar oportunidades económicas e de investimento comuns no pós-guerra; compromisso para que o processo avance.. Mas coube ao chefe da diplomacia russa fazer os anúncios mais significativos: confirmou o acordo de princípio com os norte-americanos, tendo realçado o restabelecimento das missões diplomáticas e explicado que cabe aos EUA anunciarem quem será o representante para o processo de negociação sobre a Ucrânia, ao que Moscovo irá “designar imediatamente” a seguir o seu representante. Tropas da NATO de foraLavrov aproveitou a ocasião para rejeitar a possibilidade de uma força de dissuasão ser enviada para o país sob ocupação russa. “A aparição de tropas de países da NATO, ainda que sob uma bandeira estrangeira, a bandeira da União Europeia ou as nacionais, é inaceitável”, declarou. Comentou ainda uma informação avançada pela Fox News de que teria sido abordado um plano para a Ucrânia composto por três etapas (trégua; eleições; acordo de paz). Disse desconhecer tal plano, mas classificou-o de “original e interessante”.Horas antes, o porta-voz do Kremlin repetiu a ideia de que Volodymyr Zelensky não tem legitimidade, uma vez que o seu mandato expirou no ano passado e não se realizaram eleições devido à Lei Marcial. No entanto, disse Dmitri Peskov, “o próprio Putin disse em várias ocasiões que manterá negociações com Zelensky em caso de necessidade”. Já sobre um encontro futuro entre Trump e Putin, não há ainda uma data, mas o tema foi discutido. “Ainda é difícil dizer se as posições [russa e americana] se aproximaram, mas esse era o assunto”, disse Ushakov, considerando prematuro falar de “datas concretas para um encontro entre os dois líderes”.À AFP, um alto funcionário ucraniano disse, sob anonimato, que a equipa de Donald Trump estava a repetir os erros dos anteriores presidentes dos EUA. “Obama, antes de 2014 [anexação da Crimeia e guerra no Donbass], e Biden, antes desta guerra, ambos falaram com Putin sobre nós sem nós, a Europa sem a Europa e alguém na equipa de Trump levou-o na mesma direção”, observou. As autoridades ucranianas esperam obter pormenores sobre a posição dos EUA junto do enviado especial do presidente norte-americano para a Ucrânia, Keith Kellogg, que é esperado em Kiev hoje. “É importante, para nós, ouvirmos de Kellogg o que se está a passar”, disse. O general norte-americano encontrou-se em Bruxelas com os líderes da Comissão e do Conselho depois de este ter dito que os europeus - ucranianos incluídos - não teriam assento nas negociações de paz. Quer Ursula von der Leyen quer António Costa enfatizaram a necessidade de a Europa não poder ser marginalizada. “Queremos trabalhar com os Estados Unidos para alcançar uma paz justa e duradoura na Ucrânia. Do ponto de vista financeiro e militar, a Europa contribuiu mais do que qualquer outra entidade. E nós vamos reforçar essa contribuição”, disse a dirigente alemã nas redes sociais. Já o português afirmou que “a paz não pode ser um simples cessar-fogo”. É necessário “um acordo que assegure uma paz abrangente, justa e duradoura na Ucrânia e a segurança na Europa”, declarou após a reunião com Kellogg, tendo ainda dito que a UE está disposta a continuar a trabalhar com os EUA “de forma construtiva” para garantir a paz e a segurança. O secretário de Estado Marco Rubio, que no final da reunião com a parte russa falou com os homólogos francês, alemão, britânico, italiano e a chefe da diplomacia europeia, garantiu que todos terão o seu lugar à mesa.. Mas Zelensky, que adiou uma viagem que estava programada para esta quarta-feira à Arábia Saudita porque não quer “coincidências”, falou em tom crítico e mostrou-se surpreendido sobre uma reunião para a qual não foi convidado. “A Ucrânia e a Europa no sentido mais lato, que inclui a União Europeia, a Turquia e o Reino Unido, devem participar nas discussões e na elaboração das garantias de segurança necessárias com os Estados Unidos relativamente ao destino da nossa parte do mundo”, disse durante a visita a Ancara. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan aproveitou para oferecer os seus serviços para acolher futuras negociações de paz que envolvam a Ucrânia. A integridade territorial e a soberania da Ucrânia continuam a ser indiscutíveis aos nossos olhos, e a Turquia continuará a trabalhar no sentido de uma resolução em que todas as partes estejam envolvidas”, disse Erdogan. O único acordo que envolveu Kiev e Moscovo, desde o início da invasão, foi obtido em solo turco - o acordo do trânsito de cereais no Mar Negro, que entretanto já não vigora.O presidente francês Emmanuel Macron, que na segunda-feira acolheu uma reunião de emergência com alguns líderes europeus, vai receber esta quarta-feira um segundo encontro com dirigentes de 11 países da NATO, no qual Portugal estará representado. .Portugal convidado para segunda reunião promovida pela França para discutir a Ucrânia e a segurança europeia.Em entrevista a órgãos da imprensa regional, Macron disse que a Rússia “constitui uma ameaça existencial para os europeus”, no entanto, caso Putin lhe telefonasse, “evidentemente” que iria falar com o russo. .Quem esteve à mesaSteve Witkoff Empresário do imobiliário de luxo, tal como Trump, e amigo deste há quase quatro décadas, Witkoff é o enviado para o Médio Oriente. Mas os resultados que tem obtido e a confiança que merece do seu parceiro de partidas de golfe alargaram o seu raio de ação. Durante a campanha eleitoral, este nova-iorquino de 67 anos foi o mediador entre Trump e figuras republicanas como Nikki Haley ou Ron DeSantis, adversários nas Primárias. Enquanto enviado para o Médio Oriente, e ainda antes de Trump ter assumido funções, ajudou a selar o acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas. Na semana passada foi revelado que se encontrou com Putin para negociar a libertação do professor norte-americano Marc Fogel.Marco RubioO primeiro hispânico no cargo de secretário de Estado dos EUA, o ex-senador pela Flórida de 53 anos diz-se defensor da Ucrânia, mas é contra a continuada ajuda a uma “guerra num impasse”. Com a mesma ousadia com que foi ao Panamá com um ultimato sobre o Canal no bolso, Rubio defende um acordo para tomar os minerais ucranianos como compensação.Mike WaltzEste antigo militar e congressista de 51 anos, atual conselheiro de Segurança nacional da Casa Branca, foi um apoiante de primeira hora da Ucrânia quando esta foi invadida, tendo advogado dar tudo o que Kiev necessitava para voltar a retomar o território ocupado. Mas à medida que o tempo passou, Waltz - um dos raros republicanos da era W. Bush alinhado com Trump - mudou de opinião e agora defende o fim da guerra.Yuri UshakovMoldado na época soviética pelo Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscovo, este diplomata de 77 anos foi embaixador nos EUA de 1998 a 2008. É conselheiro de Putin para as Relações Externas desde 2012. Ficaram famosas as suas declarações, na véspera da invasão à Ucrânia, de que os avisos sobre a iminência da mesma eram “histeria”.Sergei LavrovChefe da diplomacia russa desde 2004, Lavrov, de 74 anos, formou-se na mesma escola que Ushakov. Em paralelo aos esforços para Moscovo não ficar isolado na cena internacional, tem sido porta-voz da teoria de que o “regime de Kiev” ou a “Ucrânia nazi” não têm legitimidade, tendo inclusive alegado que “Hitler tinha sangue judeu” ao referir-se a Zelensky, judeu. Há dias comparou a America First de Trump à Alemanha nazi.

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