Lagos quer recomeçar. "Gostava de chegar aqui e ver isto como no ano passado"
A última quinzena de junho - mês que nos últimos anos já trazia ao barlavento algarvio muitos turistas - está fraca. Nas ruas, onde antes era preciso andar a pedir licença e acotovelar para passar, o caminho está desimpedido. As esplanadas estão vazias e os empregados de mesa não tentam sequer aliciar os clientes de ementa não mão; não passa quase ninguém. As lojas, abertas, esperam em vão por alguém que entre. Na marginal corre apenas um atleta mais dedicado e os bancos onde se toma o vento do mar estão quase vazios.
Resta a população local (cerca de 31 mil habitantes), a biológica e a adotiva, e meia dúzia de estrangeiros fiéis, que mal as fronteiras aéreas com a União Europeia reabriram vieram matar saudades. Mas as viagens ainda estão condicionadas e quem vem de fora chega a conta-gotas. Os taxistas sabem-no bem. Acostumados a parar em frente ao aeroporto de Faro e às estações de autocarro e de comboio por terem trabalho certo, têm os motores parados durante todo o dia. Do comboio que, de duas em duas horas, atravessa o Algarve, ao fim da linha - como quem diz Lagos - chegam menos de 50 pessoas quer de manhã, quer à tarde.
Mesmo com a pandemia esperavam mais movimento. O município resistiu até agora com uma quantidade de casos de covid-19 residual e foi-se servindo disso como bandeira para propor umas férias num local tão seguro quanto possível. No entanto, uma festa de anos ilegal no Clube Desportivo de Odiáxere (uma das quatro freguesias do concelho), a 7 de junho, que causou mais de cem infetados, deitou a perder a imagem construída. Três quartos das pessoas que passaram pelo evento vivem no concelho de Lagos que apresenta agora 77 casos no boletim epidemiológico da Direção-Geral da Saúde.
Entre os comerciantes todos admitem que o que ganharam nos primeiros quinze dias de junho perderam na última quinzena, quando a cadeia de transmissão local se tornou conhecida, até nos Estados Unidos, onde foi noticiada pela CNN.
Foi preciso ter pulso forte para tomar as rédeas ao negócio depois, principalmente, quando o problema entrou pela porta a dentro. Um dos casais que passou pela festa trabalhava no restaurante Adega da Marinha, um dos mais emblemáticos da cidade, conhecido pela sua fila de espera à porta a contornar a casa que servia em simultâneo 400 pessoas, uma espécie de "cantina da tropa com boa comida", explica quem por lá passou.
Jaime Maximiano, 71 anos, o dono do restaurante recebeu uma chamada com a confissão do casal que emprega. Nessa mesma tarde, andou numa roda viva, depois de terem confirmado que os dois jovens estavam positivos para a covid. Fechou de imediato o restaurante, contratou uma equipa de desinfeção e um laboratório privado para vir testar, ainda na mesma tarde, todos quantos passaram por ali.
Não encontraram outros positivos, mas foi a segunda vez, em 27 anos, que fechou a porta ao estabelecimento, que só interrompia o ritmo frenético para o natal e para um jantar anual com todo o pessoal da casa. A primeira foi durante o estado de emergência, quando aproveitou para fazer obras.
Nunca deixou de investir, de acreditar. É o seu espírito aventureiro, estratega, calculista. Ribatejano de Alpiarça, chegou a Lagos depois da tropa para passar "uns diazinhos de férias" em casa da irmã mais nova, "numa altura em que vir ao Algarve era quase uma aventura". Enamorou-se pela paisagem, pelo bom peixe, pelo sol e foi arranjar trabalho. Hoje, é um dos principais empresários de restauração em Lagos. Na avenida principal - a 25 de abril - tem o D. Henrique e a pizzaria Giovanni e na praia de Porto de Mós tem o Campi Mar - uma esplanada que "não é ao pé da praia, é dentro da praia", insiste. Ao longo dos anos o negócio teve dias bons e outros maus e, até agora, o que mais lhe custou foi talvez encerrar o restaurante que tinha na praia da D. Ana, por causa do perigo de derrocada. "A minha mulher ainda hoje encomenda peixe para lá. E só depois é que se lembra. Foi um trauma", conta.
Nos seus restaurantes faz tudo, conhece todas as centenas de funcionários pelo nome e pela sua história, sabe-lhes as qualidades e gaba-se de só trabalhar com gente talentosa. "São eles que fazem as casas", admite, embora ande sempre de volta dos seus restaurantes, que já têm um sucessor - Nuno, o filho mais novo "que parece que até sonha com isto".
Jaime Maximiano levanta-se sempre às 6:00, uns dias porque tem de ir ao ginásio pedir ao corpo que aguente o ritmo de vida que leva, outros pelo hábito. Despacha-se e vai para o escritório ou para um dos restaurantes, por onde passa todos os dias e onde é capaz de ficar até à meia-noite, para fechar. O único tempo de descanso é aquela hora depois de almoço em que se encosta no sofá e mete na televisão o YouTube; escolhe o Demis Rousso para começar "e é deixar que ele surpreenda com as músicas a seguir. Ele já sabe os meus gostos".
Ultimamente, é mais difícil esvaziar a mente. Mas mantém a confiança no "império de trabalho" que criou. Permanece bem-disposto: "Ó Vitória, tu continua-me com esse sorriso lindo mesmo com a máscara", diz para a rapariga que recebe os clientes à porta do restaurante da praia.
"Só gostava de chegar aqui e ver isto como no ano passado, sem nunca haver lugar para mais um almoço ou jantar", desabafa. A praia não é muito grande, mas está bom tempo e vão aparecendo umas quantas pessoas, que se demoram nas duas esplanadas do Campi Mar, antes de estenderem a toalha no areal. O cenário não é muito animador, mas Jaime não o deixa transparecer e vai sorrindo para os clientes, dando-lhes conversa, em português ou em inglês. "Este é um trambolhão maior, mas eu sou dos que resistem", promete com as palavras e com o olhar decidido. "O que é que falta nesta casa? Aviões."
Enquanto espera pelos aviões e sabendo que alguns podem mesmo não chegar a aterrar, caso o governo britânico não faça um acordo com o português, até ao final da semana, para levantar a quarentena obrigatória num dos destinos preferidos dos ingleses - o Algarve -, prepara-se o melhor que pode. Já tinha os cuidados de higiene em dia, tinha inclusivamente uma engenheira alimentar a trabalhar em exclusividade consigo que lhe preparava relatórios semanais sobre os restaurantes com um pormenor que chega ao tamanho das unhas dos trabalhadores.
Mesmo assim reforçou as medidas. Afastou as mesas, criou ementas descartáveis e eletrónicas, colocou acrílicos a reforçar a barreira entre os clientes na nova esplanada e automatizou tudo o que conseguiu para que não seja necessário tocar em superfícies, desde o autoclismo na casa de banho à torneira ou ao dispensador do sabonete. Adotaram uma atitude pedagógica com quem aqui entra, explicando o que deve e o que não deve ser feito. Todos os trabalhadores foram instruídos. E sabem que o mais importante é reconquistar a confiança das pessoas. Têm duas indicações: fazer tudo o que está ao seu alcance para que ninguém contraia o vírus ali e para que ninguém esteja a pensar que pode contrair o vírus ali. "À mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta", cita Jaime.
Por isso, limpam tudo duas vezes. Assim, que uma mesa fica vazia desinfetam e quando é novamente ocupada pedem aos clientes para esperar um minuto para que possam repetir a tarefa perante os seus olhos. Conquistá-los.
O prémio são os risos que veem da esplanada e se misturam com o barulho das ondas. "Olhe-me só para isto: para a felicidade desta gente", diz Jaime satisfeito, à medida que as mesas se enchem. Faz um gesto de aprovação para a equipa e diz-lhes "continuem". "Eu estou sempre a transmitir-lhes que vamos conseguir".
O presidente da Câmara Municipal de Lagos, Hugo Pereira, agradece este espírito e pede a todos para não viverem "agarrados ao medo, mas com as medidas para ultrapassar esse medo". O autarca, eleito pelo Partido Socialista, tinha grandes esperança para este ano, que lhe saíram furadas, lamenta, mas não quer que as adversidades impeçam a sua cidade de "receber bem".
"Queremos mostrar que Lagos é um sítio seguro, como era antes da asneira, da irresponsabilidade que foi a festa, e que agora continuará a ser", diz, logo depois de desinfetar mais uma vez as mãos, quando se senta no auditório da Câmara, onde nos encontramos.
O acontecimento até pode ter um aspeto positivo, se servir de alerta, continua, acrescentando que "não haver casos podia transmitir uma falsa segurança". Agora, as medidas de higiene e de distanciamento social são a prioridade, porque os resultados do desrespeito pelas indicações das autoridades de saúde estão à vista. O que não impediu outra festa ilegal de acontecer a semana passada em Lagos. O segundo evento, de menor dimensão, não terá causado qualquer infetado, mas teve de ser interrompido pela GNR.
"Sabemos os riscos que corremos. Temos de viver com as condições de segurança, as máscaras, a lavagem das mãos, o distanciamento e isso só por si não é suficiente para garantir que não vai haver infetados aqui. Vamos ter de certeza pessoas de sítios com focos. Mas vamos preparar-nos para que tudo corra bem, para evitar ao máximo focos de contágio ou a existirem serem combatidos da maneira que têm vindo a ser", garante Hugo Pereira, economista de formação, mas com uma relação estreita com a área da saúde, tendo estudado saúde pública. "Lagos está de portas abertas para quem nos queira visitar. O Algarve é um destino seguro", que tem agora 615 casos dos 41 912 nacionais e 15 vítimas mortais das 1568.
"Tenho receio. Muito. Isto não está para brincadeiras", admite Deolinda Costa, 61 anos. A vendedora de fruta e legumes do mercado municipal divide-se entre a falta que os clientes lhe fazem e o medo que sente por lhe aparecer alguém que possa estar infetado. Não tem resposta para o dilema, mas já tomou uma posição: está junto à banca às 7:00, hora de abertura do mercado, e só começa a retirar a fruta dos cestos pelas 14:00, hora de fecho. Fica até ao fim, não vá aparecer alguém e, mais do que nunca, cada cliente é uma ajuda.
Só de pensar em deixar o lugar que era da avó e onde o pai também vendeu entristece-se e embarga-se-lhe a voz. Deolinda vende no segundo piso do mercado há 32 anos. "Isto já não estava bom. Agora, está péssimo", diz. "A gente de inverno trabalhava com as pessoas da cidade. De verão tínhamos os turistas. Agora, turismo não há e as pessoas da cidade não saem com medo. Veem uma vez por semana, ao sábado, por exemplo, mas é compreensível".
À quinta-feira de manhã, o segundo andar - onde podem entrar até 25 pessoas de cada vez, controladas à entrada por um segurança - está vazio. A fita que marca a fila à porta, antes do desinfetante, de nada serve. E no primeiro andar - onde podem estar até 35 pessoas - o cenário repete-se, apesar de sempre estar mais preenchido. É onde estão as bancas do peixe, "ex libris da cidade". "É um dos melhores mercados de peixe nacionais", garante Ana Mendes, 36 anos, que ocupa uma das primeiras bancas em frente à porta principal.
Às 10:30 ainda tem a montra cheia de sardinhas, carapaus, lulas, chocos. Há quem passe e diga "bom dia", mas parar e comprar é que é mais raro. "É fácil de perceber que isto está atípico" até para quem vem de fora, quanto mais para quem passou a vida no mercado, como Ana. Ocupa o lugar há 15 anos, mas antes disso já dava uma ajudinha ao pai e à mãe, ambos vendedores de peixe e agora recolhidos em casa por causa da idade e da covid.
No mercado, o toque pessoal, no entanto, não desapareceu. O atendimento continua a ser uma experiência personalizada. Os vendedores dão conselhos sobre qual o melhor tipo de maçã, partilham receitas e querem saber como está a praia se passa alguém de chinelos e toalha ao ombro. "Pena não podermos dar um abraço", queixa-se Fátima Nunes, 49 anos, vendedora de produtos regionais (conservas, azeite, vinhos, farinha de alfarroba, aguardente de medronho, bolinhos e doces locais). O brasileiro, com o Corriere della Sera de baixo do braço direito, surpreende-se: "ainda se lembra de mim". "Claro", diz Fátima, efusiva, provando que não se esquece dos clientes de um ano para o outro. Vendeu uns biscoitos e um doce, o lucro da manhã. "É preciso ter esperança para estar aqui cinco horas para atender um cliente".
Mas Ana tem, por enquanto. Se a câmara municipal lhe começar a pedir a renda das duas bancas que tem (entretanto cancelada como uma medida de apoio aos comerciantes), aí vai perder a esperança. Terá de se ir embora com os filhos, talvez até da cidade. Talvez tenha de voltar para Setúbal - onde nasceu - e de onde saiu por não ter trabalho. "No mês passado, a minha faturação foi o equivalente a um dia de trabalho. Não só pela falta dos turistas, mas as pessoas daqui também têm medo".
Deixa o balcão, que é um empecilho para si, gosta da proximidade, de falar lado a lado com os clientes, alguns com quem tem uma relação quase de amizade. Vai até à janela, mesmo em frente ao lugar que alugou há quatro anos, com vista para a marginal de Lagos: "11 horas e a avenida está vazia. Onde é que isto já se viu em junho?", pergunta.
A questão anterior pode ser feita em todo o lado. O extenso areal da Meia Praia, a principal praia da cidade, que inspirou de Sophia de Mello Breyner a Zeca Afonso, está deserto às 17:00 de um dia de verão ensolarado. As pessoas também não estão nos museus que contam a história da cidade - do mercado negreiro, às armadas inglesas, à presença dinâmica do Infante D. Henrique, grande impulsionador dos descobrimentos portugueses, ao terramoto de 1755, que destruiu quase todo o centro histórico de Lagos e deslocou a capital do Algarve para Faro.
Na igreja de Santo António, "a menina bonita de Lagos", como lhe chama Edgar Nunes, técnico de restauro do monumento, também não há visitantes. Esta semana, passou por aqui um grupo com 25 pessoas, que entraram à vez, porque agora só podem estar sete pessoas em simultâneo na antiga igreja militar revestida a talha dourada, que homenageia Santo António. Preparam-se para ficar muito aquém dos 78 420 visitantes que receberam no ano passado. "Infelizmente, com a covid, as pessoas não estão tão preocupadas em visitar monumentos", diz.
É este também o sentimento de Agostinho Costa, 50 anos, funcionário do Jardim Zoológico de Lagos há 14, parque que comemora em setembro duas décadas. Recebem anualmente cerca de 70 mil pessoas. Neste momento, poucos são os que passam a cancela da bilheteira para ver as mais de 150 espécies animais, em especial a ilha de 33 primatas, eixo central da visita. "Isto está que é uma desgraça", comenta.
Agostinho é responsável pelos tratadores e ele próprio conhece os animais todos como a palma das suas mãos. É o único que consegue alimentar o chimpanzé Lucas, resgatados das ruas de Espanha e que tem o mau hábito de enviar pedras aos turistas. Agostinho tem jeito para os animais e para as pessoas, mete conversa com toda a gente enquanto alimenta os pelicanos. Partilha com os visitantes as curiosidades do dia-a-dia e interessa-se por saber de onde veem e o que fazem.
"Nós estamos numa cidade pacífica e com uma depressão", resume Gonçalo Oliveira, 36 anos, o proprietário do café Oceano e do restaurante Abrigo, mais conhecido como a esplanada das laranjeiras, na avenida principal de Lagos. "Vai ser duro", perspetiva, apesar de manter a fé na região por crer que mal a pandemia seja dada como extinta "as pessoas vão precisar do que o Algarve tem para oferecer". "Lagos é bom para a contemplação, para ver um pôr-do-sol numa rocha, para desfrutar de tempo em família".
O dia é tão diferente e a noite não existe. Às 19:00, quase todas as portas do comércio já estão fechadas, restam as esplanadas dos restaurantes. Reina o silêncio na avenida principal, com os bares e as discotecas todos encerrados. À porta um papel que adia as noites de Lagos. Lagos não é Albufeira, não é Vila Moura, é um conceito mais familiar, mas tinha noite.
A meio da 25 de abril há uma concentração de quatro bares, apenas um está aberto, o Mynt Bar, porque também serve petiscos indianos, nacionalidade dos novos donos da casa. Uma família de seis que chegou a Lagos em outubro do ano passado e que comprou este espaço - um corredor pequeno, onde mesmo assim o gerente Miguel Nico garante que cabiam dezenas de pessoas e ainda havia espaço para dançar, com música ao vivo. E quem não cabia, ia para a rua fazer a festa.
"Era muito movimentado. Sempre a rodar. Era um mar de gente até de manha", diz o alentejano de 24 anos, que trabalha neste bar há três, mesmo quando tinha outro proprietário. A música continua alta, com o "Superstition" do Stevie Wonder a bombar nas colunas, mas Miguel não tem oportunidade de mostrar os seus dotes atrás do balcão a preparar cocktails. Serve apenas uma ou duas cervejas na esplanada com duas mesas e quatro cadeiras, quase em cima de uma rampa. "Se isto continuar assim... daqui a dois ou três meses vamos fechar", lamenta Poutik Patel, 23 anos, o proprietário.
"Nunca houve uma crise como esta", dizia Gonçalo Oliveira, o dono do Oceano, que assumiu, há dez anos, os negócios criados pelo pai e pelo tio desde 1977. "2020 nem sequer se pode comparar a uma guerra, porque nem na guerra a economia para", explica. "Eu às vezes ia à rua, durante a quarentena, e não via ninguém". Chega-se à frente na cadeira da esplanada do seu café, abre muito os olhos e inspira: "Nessas alturas perguntava-me sempre: houve aqui um ataque químico? Sabe aqueles documentários do canal de história da reconstrução sem humanos. É isto. É desolador. É brutal."