As ameaças à segurança interna para 2021. O prognóstico dos peritos

Radicalização ideológica, crimes de ódio, cibercriminalidade, em cenário de pandemia e crise económica, destacam-se como as principais ameaças para Portugal em 2021
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Em plena pandemia, apesar da vacinação em curso, e com uma crise económica a instalar-se, quais vão ser os principais desafios para a segurança interna portuguesa? Além da criminalidade tradicional -tráfico de droga, armas e pessoas, roubos, violência em geral - os analistas ouvidos pelo DN são unânimes noutro ponto que também terá eco em 2021: a tendência para a radicalização ideológica com os consequentes conflitos sociais e polarização da sociedade - que atingirá as próprias forças de segurança - são uma séria ameaça a ter em conta.

"O protesto social e a desordem pública talvez sejam as principais ameaças à segurança interna em 2021. A atividade de protesto e a agitação social ainda permanecem moderadas. Mas o prolongamento do confinamento e/ou uma maior simpatia pela causa dos manifestantes poderão exacerbar a agitação. As dificuldades causadas pela pandemia, bem como os movimentos próximos do Black Lives Matter no início do verão, levaram a um aumento dos protestos em toda a Europa este ano. Nunca a atividade de protesto foi tão intensa como este ano numa faixa tão ampla do continente e num período de tempo tão curto", afirma Felipe Pathé Duarte, professor e investigador em segurança internacional da Nova School of Law.

Para este analista, "a falta de representação política clara diz-nos que o apelo dos protestos ainda é limitado" mas "a falta de afiliação política significa que os protestos não são limitados por cálculos políticos" e, logo, "os manifestantes estão mais propensos a usar violência e disrupção, pois não estão preocupados em preservar apoio eleitoral ou obter ganhos políticos."

Se o terrorismo de extrema-direita é considerado por organizações internacionais, como uma ameaça, em crescendo, à segurança do ocidente, o major-general Agostinho Costa, membro do Grupo de Reflexão Estratégica sobre a Segurança (GRES) encara essa radicalização ideológica com preocupação também no nosso país, incluindo as suas infiltrações nas forças e serviços de segurança.

"O terrorismo que a sociedade tem de estar atenta é o de inspiração xenófoba, conducente aos crimes de ódio decorrentes do discurso ideológico e à polarização da sociedade que tem já expressão em Portugal e representação na AR. A retórica do partido de André Ventura e dos fascistas que estão a sair do armário e a abandonar os partidos do sistema onde estiveram acantonados desde o restabelecimento da Democracia, é fomentadora de um clima que legitima a violência contra os diferentes e os excluídos da sociedade, conferindo legitimidade e exaltando posturas assentes na violência, tanto por parte dos cidadãos como dos agentes da segurança."

Este oficial general, que foi segundo-comandante da GNR, assinala que "o incremento da violência policial, com casos que têm sido amplamente mediatizados, onde o crime do aeroporto Humberto Delgado se insere, são a expressão prática do absurdo que envolve esta narrativa, cuja expressão no seio das polícias encarna no chamado "movimento zero: neste clima de confrontação e de desrespeito pelos valores, a tolerância é a segunda baixa, depois da verdade".

O presidente do Observatório para a Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, António Nunes, antevê mesmo que, "se os resultados nas presidenciais dos partidos mais à direita lhes forem favoráveis" se pode verificar a tendência "de alguns movimentos inorgânicos radicais encontrarem nestes partidos uma base oficial para combates futuros".

E isso, no entender deste perito, "pode criar problemas a nível da estabilidade interna das próprias forças de segurança, com a possibilidade de alguns dos seus elementos integrarem esses movimentos, como já se verificou, podendo levar a situações de conflitos com comunidades específicas da sociedade".

António Nunes e Agostinho Costa estão de acordo quanto ao impacto da crise económica na segurança interna, designadamente na pequena criminalidade. O presidente do OSCOT acredita que "as comunidades que estavam mais dependentes do turismo e da restauração, setores profundamente afetados pela pandemia, possam, por uma questão de sobrevivência vir a recorrer, mesmo que pontualmente, ao pequeno furto".

O major-general entende que "caso o Estado não seja capaz de manter as políticas de apoio social em curso, ou enverede pelos discursos maniqueístas do tempo da troika, é possível que se verifique um aumento da pequena criminalidade como forma dos marginalizados e excluídos assegurarem a sua sobrevivência".

Diogo Noivo, analista de risco de segurança, está em total desacordo com este prognóstico: "A crise esperada - e expectável - não terá impacto na criminalidade em Portugal. Embora contraintuitivos, a imensa maioria dos estudos empíricos demonstram que não há uma relação de causalidade direta entre pobreza/precariedade e crime. Portugal é exemplo disso: basta olhar para o período da troika, no qual a criminalidade desceu de forma paulatina ano após ano."

Noivo e Agostinho Costa estão, porém, de acordo, quanto ao recrudescimento da cibercriminalidade. "Acompanharemos a tendência crescente deste tipo de criminalidade, mercê da tecnologização da sociedade", afirma o oficial general.

"Os confinamentos e demais medidas de controlo da pandemia deixaram empresas e trabalhadores cada vez mais dependentes da internet, de computadores pessoais e de acessos domésticos à rede. Houve uma redução do nível de segurança que tem sido aproveitado pelo crime informático, uma tendência que deverá manter-se", completa Diogo Noivo.

Estarão as forças de segurança preparadas? Agostinho Costa manifesta algum ceticismo: "o Sistema de Segurança Interna português tem vivido sob a ilusão de que somos um país de brandos costumes", considerando "inútil" a figura da secretária-geral. Destaca que "a efetividade do sistema só é válida quando este é sujeito a pressão e dos dois verdadeiros desafios que tivemos (Pedrógão e caso aeroporto/SEF) o sistema mostrou as suas vulnerabilidades".

"Como o diabo está nos pormenores, este último pequeno incidente sobre a entrega das vacinas mostra as incongruências de um sistema atomizado, corporativo, avesso à cooperação e, naturalmente, fragmentado. Se fosse uma empresa já tinha falido, porque nenhuma empresa permite que as suas dependências concorram e conflituam ostensivamente entre si", assevera.

Para este perito do GRES "criou-se a figura da secretária-geral do Sistema de Segurança Interna, mas em contrapartida não se conferiram nem autoridade nem poderes de comando e controlo, sendo efetivamente inútil. Proliferaram-se polícias e autoridades administrativas pelos diferentes ministérios, com sobreposição de competências e áreas de intervenção potenciadoras de conflito. Persistem práticas anacrónicas, como a de considerar como fronteiras os limites da responsabilidade territorial das duas forças de segurança, sendo indutoras do entrincheiramento nos respetivos bastiões territoriais".

Por seu lado, Diogo Noivo viu "nos últimos cinco anos uma concentração de problemas sérios e de episódios pouco edificantes no domínio da segurança interna (incêndios em 2017, caso Tancos, assassínio de um cidadão ucraniano por funcionários públicos em instalações do Estado, o caso das golas antifumo, entre muitos outros) que expõem as debilidades do sistema e a incapacidade permanente da tutela".

Para este especialista em terrorismo e autor do livro Uma História da ETA - Nação e Violência em Espanha e Portugal, "além dos problemas intrínsecos revelados, esta sucessão de casos afeta a confiança dos cidadãos no sistema e a motivação dos homens e mulheres que servem nas forças e serviços de segurança. São sérios desafios à segurança interna".

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