Na véspera do início do novo milénio, o presidente russo Boris Ieltsin surpreendeu o mundo ao anunciar que ia sair do Kremlin, deixando no cargo o homem que poucos meses antes tinha nomeado primeiro-ministro: Vladimir Putin..Nascido em Leninegrado (atual São Petersburgo) a 7 de outubro de 1952, Putin era um agente do KGB em Dresden, na Alemanha de Leste, quando o Muro de Berlim caiu, em 1989. De volta a casa, trabalhou para o presidente da câmara da sua cidade natal, Anatoly Sobchank, e quando este perdeu a reeleição mudou-se para Moscovo, acabando como assessor de Ieltsin. O presidente nomeou-o em 1998 como diretor do FSB, a agência de informação sucessora do KGB..Menos de um ano depois, a 9 de agosto de 1999, então com 47 anos, foi nomeado primeiro-ministro. O ex-agente secreto, na altura pouco conhecido quer a nível nacional quer internacional, era o quinto chefe de governo de Ieltsin em menos de um ano. O presidente ia então no oitavo ano no poder, mas era cada vez mais impopular e estava doente (sofria problemas de coração)..Nas semanas que se seguiram à sua nomeação, Putin foi ganhando destaque e popularidade graças à sua resposta a uma série de bombardeamentos a apartamentos que fizeram mais de 300 mortos. O primeiro-ministro apontou o dedo aos militantes chechenos e não hesitou em responder com força, bombardeando e atacando a região separatista para tentar recuperar o controlo..A 31 de dezembro, depois de um resultado positivo nas eleições para o seu Partido da Unidade (foi segundo a um ponto percentual do Partido Comunista, mas através de alianças conseguiu uma maioria favorável na Duma), Ieltsin surpreende ao anunciar a demissão. Alegou que o país devia entrar no novo milénio com novos líderes..Putin assumiu interinamente a presidência, mas graças ao sucesso da sua política de força na Chechénia ganharia as eleições de março de 2000 à primeira volta, com 53,4% dos votos..Avançamos 20 anos e Putin continua no Kremlin, de onde esteve afastado apenas entre 2008 a 2012. A Constituição proíbe que o presidente tenha mais de dois mandatos consecutivos, com Putin a assumir o cargo de primeiro-ministro de Dmitri Medvedev, que até então tinha sido o seu chefe de governo. Um cargo que voltou a assumir depois da reeleição de Putin como presidente..Em 2008, a Constituição foi alterada e do inicial mandato de quatro anos passou-se a um mandato de seis anos, com Putin a ser reeleito em 2012 com 60% dos votos e depois em 2018 com 76%. O seu quarto mandato termina em 2024..Impedido por lei de se recandidatar a um novo mandato, Putin foi questionado em relação ao futuro na conferência de imprensa anual que deu a 19 de dezembro. "O que podíamos fazer em relação a esses mandatos é suprimir o qualificador consecutivo em relação à função presidencial", disse Putin, o que excluiria qualquer regresso ao Kremlin após 2024, mas também que venha a haver outro presidente russo que cumpra mais de dois mandatos..Mas será o fim político de Putin, que terá então 71 anos? Há quem alegue que o presidente quer manter-se no poder, assumindo novas funções - passa, por exemplo, por uma união com a Bielorrússia -, ou que poderia ser novamente primeiro-ministro..A questão da Bielorrússia parte de um tratado, assinado entre os dois países em 1997, que prevê a criação de uma Confederação económica com um só presidente e um parlamento único. Putin, que tem mantido reuniões com o homólogo bielorrusso, Alexander Lukashenko, para discutir uma maior aproximação, poderia assumir o poder da nova união. Mas esta possibilidade tem gerado protestos na Bielorrússia (dependente energeticamente da Rússia), que teme perder a independência e acusa Moscovo de procurar uma anexação, como a da Crimeia..Outra opção, alegam alguns, é seguir o exemplo de Nursultan Nazarbayev, no Cazaquistão. O ex-presidente deixou o cargo após quase três décadas no poder, sendo substituído por Kassym-Jomart Tokayev, mas continua a ter grande influência no país como "pai da nação" (um cargo que assumiu há uma década) e como líder do Conselho de Segurança..Sobre sucessores, em momento algum Putin quis apresentar um nome, ironizando quando foi questionado sobre quem podia ser candidato à presidência ao dizer que o jornalista podia ser um deles. Numa entrevista ao Financial Times, em junho, Putin disse que estava a pensar na sua sucessão "desde 2000", reiterando que "no final, e digo-o sem exagero ou teatralidade, no final a decisão tem de ser feita pelo povo da Rússia".Mas falou também da hipótese de ser uma mulher: "Do ponto de vista da governança, do ponto de vista da responsabilidade diante do país e dos cidadãos, as exigências não são diferentes em função do género", disse o presidente. "As mulheres, contudo, trazem à política um toque feminino, menos agressivo. Parece-me que haverá uma procura [por este tipo de qualidades]", referiu..Balanço dos 20 anos.Em relação aos últimos 20 anos, Putin lamentou na conferência de imprensa que a pobreza não tenha sido erradicada, mas considerou que a Rússia fez "um progresso considerável", alegando que o país de 2000 e o de agora "são quase dois países diferentes". A sua primeira década no poder foi marcada pelo boom do preço do petróleo, que possibilitou o crescimento do consumo e o aumento do nível de vida, com o presidente a apostar também a nível ideológico na ideia de recriar a Grande Rússia do passado..Quanto aos acontecimentos que marcaram a sua presidência, Putin assinalou os ataques de Beslan em 2004 (mais de 300 mortos, entre os quais quase 200 crianças) e o do teatro Dubrovka de Moscovo, em 2002, que resultou em 128 mortos. Logo o primeiro ano do seu mandato ficou marcado pelo acidente do submarino Kursk e a sua resposta demorada à morte de 118 marinheiros nas profundezas do mar de Barents..Ainda a nível interno, a presidência de Putin ficou marcada por uma mão forte contra os opositores, começando com o oligarca (milionários que tinham enriquecido com as privatizações da década de 1990) Mikhail Khodorkovsky, que foi detido em 2003 e acusado de fraude. Seria condenado, apesar de sempre ter alegado que estava inocente, com os seus apoiantes a dizer que o julgamento tinha motivos políticos, já que ele financiava partidos opositores. Em 2013 recebeu um perdão de Putin e foi viver para Londres..Outros opositores ou críticos acabaram também presos ou mortos, como a jornalista Anna Politkovskaya, crítica dos abusos de direitos humanos na Chechénia, assassinada em Moscovo em 2006, ou Alexander Litvinenko, um ex-espião que tinha fugido para o Reino Unido e que foi morto envenenado com polónio-210..Em 2018, a reforma das pensões levou milhares de russos às ruas em protesto incentivadas pelo opositor Alexei Navalny (que passa o tempo dentro e fora da prisão), obrigando o presidente a recuar ligeiramente - a idade de reforma aumentou dos 60 para os 65 anos no caso dos homens, mas de 55 para os 60 (e não 63 como originalmente previsto) para as mulheres..Já em 2019, antes das eleições municipais, Moscovo foi palco de manifestações sem precedentes, com milhares de jovens a denunciar o escrutínio como não sendo livre e justo. Muitos opositores foram impedidos de se candidatar nas principais cidades do país. Os protestos, com a repressão policial e judicial, acabariam por se esfumar..A nível internacional, as boas relações que Putin tinha com o Ocidente - no seguimento da política de ocidentalização que Ieltsin tinha iniciado - ficam ensombradas primeiro com a invasão do Iraque, mas mais concretamente com a Revolução Laranja de 2004 na Ucrânia, que resulta na eleição de um presidente pró-ocidental, algo que Moscovo vê como uma ingerência na sua esfera de ação..Três anos depois, num discurso em Munique, Putin denuncia o "domínio monopolista" das relações mundiais dos EUA, acusando Washington de espalhar instabilidade, num discurso que marca o início do confronto com a NATO. Seguiu-se a Guerra na Geórgia, a intervenção ocidental na Líbia, a guerra na Síria e a crise na Ucrânia, com a nova revolução de 2014, que vai culminar na anexação da Crimeia e na guerra em Donbass. Estes últimos episódios reforçam a sua popularidade a nível interno..Em 2016, a Rússia é acusada de alegadamente interferir nas eleições presidenciais dos EUA para ajudar à eleição de Donald Trump, depois de outras supostas ingerências noutros atos eleitorais, como o referendo do Brexit no Reino Unido..Questionado sobre se já é uma personalidade histórica, Putin respondeu: "Cabe às futuras gerações dizê-lo. Para nós, os contemporâneos, e para mim, a título pessoal, não é uma questão à qual devo dar resposta."